o mistério dos homens adormecidos
alguns jazem no plaino abandonado que a morna brisa aquece no bolso direito das calças a cigarrilha breve o peito exposto ao ar os braços cruzados debaixo da nuca na vulnerabilidade de um gesto para lá da farda regimental do fato e gravata de todos os dias e depois da poeira sobre os sapatos a respiração tão regular do corpo é de repente um acidente da sorte uma dádiva improvável e oportuna trazendo de volta a desaceleração do quotidiano alguns nem estão à espera de ver o mundo arder cumprem os dias como se tudo o que alguma vez lhes tivesse sido dado viver fosse um dia só e apenas uma só versão desse dia existisse a profundidade existe apenas quando jazem sem cuidado ao comprido num sofá num vigésimo segundo andar num apartamento de vinte cinco metros quadrados rodeados por um marulhar de barulhos por todos os lados e sem que o nada os acosse um leve sorriso cai sobre os lábios e um cigarro arde no cinzeiro enquanto eles deslizam pelo aqueronte do sono adentro sem espadas e sem escudos que lancem a agulha da resistência ao desconhecido noite adentro a confiança ou uma promessa de amantes pode ser algo como isto alguns regam as plantas cinco minutos antes e desfazem os nós dos atacadores e tiram ordeiramente os sapatos e reconhecem até mesmo a proximidade da morte mesmo agora enquanto comem uma refeição enlatada enquanto me dou conta de que alguns são ainda até atléticos e musculares e necessários e mesmo a sua extrema necessidade alimenta o desejo de todas as coisas a precisão de alguns instantes quando rapazes jogam à bola debaixo dos olhares de leões e as cidades são imponentes e inteligentes e sem perdão como os aborrecidamente espertos quartetos de mozart alguns fecham os olhos e inadvertidamente deitam abaixo a última parede do mito aquela que postulava que a inteligência que permite ler os dias é uma espera posta à destruição adormecendo alguns entrelaçam as mãos sobre o peito como guerreiros medievais sepultados em túmulos de pedra no coração das cidades e é estelar o seu abandono como um fragmento de vidro que se ilumina de repente na escuridão do ar e mergulhados profundamente no sono intuem a profundidade do azul na obscuridade da noite as chamas que marcam as amuradas da noite as coordenadas do sal na pele para lá das horas em que escreveram linhas em que declararam conhecer bem o sal que se cola à pele vinda das orlas de certas praias no atlântico e no entanto alguns persistem e aceleram para lá do sono em carros que cortam pela noite demasiado cansados e um pouco decadentes na fronteira com a extrema incoerência um pouco para lá do cansaço para lá do facilmente evidente Nápoles, 8 de Outubro de 2017 antonio gamoneda para os dois Joões, Bosco & Moita ao fim de cinco copos de vinho eu queria ser um poeta da contenção daqueles que escrevem poemas de seis linhas com reviravoltas brutalmente inteligentes nos últimos quatro versos do enredo mas o que torpor alcoólico não resolve há-de o mundo esmurrar até que a voz me arranhe na garganta até que me doa falar de certas pessoas de alguns lugares até que o que me dói seja a mais insignificante mas mais nuclear partícula da extensa galáxia do meu amor e com a paz dos que são derrotados pelo cansaço eu possa por um instante pousar a mão contra uma têmpora e dizer avariou-se-me precisamente esta parte esta parte do corpo onde não entra a presença de espírito mas o corpo é uma peça e um mapa e a corda de um instrumento que só pode ser estendida até um ponto máximo de pressão e este general tem de marcar com os seus alfinetes que territórios são para ser conquistados e o que desaparece agora nasce com o sol e derrama-se num voo a pique sobre a tarde plana ao alto sem que lhe possa dar um título que me deixe acreditar que me posso safar com qualquer coisa e então eu ia querer dar a um homem o nome de libro del frío mas não sinto que tenha autoridade para pensar no medo e na luz diante dos olhos na precisa intersecção do medo e da luz diante das vinhas abrasadas pelo inverno quando a familiaridade das árvores deixa de existir e com isso o mundo deixa de ser familiar e há-de haver em alguma destas casas marcadas para o ano novo e para a páscoa alguém que como eu não possa amar nem a desaparição nem a ideia de perda em abstracto mas antes alguns objectos de uma dor digna de confiança os objectos de uma perda com rosto humano as pequenas coisas que despontam todos os dias e trabalham para um ressurgimento na dicção desajeitada e sem ritmo da percussão de um tambor que viaja através do ar electrificado na longa noite de inverno onde a flor do sono está ainda a arder e há uma mulher de ombros nus escondida entre os lençóis e inventários de pequenos arrependimentos coligidos em velhas molduras em todas as moradas Oxford, 29 de Dezembro de 2017 materiais mais pesados nesta cidade os poetas enchem salas de espectáculo para ver combates de boxe alguns de entre nós literatos tentam fechadas todas as livrarias apreciar o que isto tem de dança antes dos rostos no centro do espetáculo manchados de sangue mas também nós estamos agora só a contar o tempo entre os golpes que vão sendo desferidos na arena sob o corpo de um atleta cansado tão cego de raiva que vai agora investindo golpe baixo atrás de golpe baixo contra a fúria do árbitro e dos bêbados na audiência e eu constato que é mesmo necessário destilar gin para tentar curar por alguns momentos uma tristeza completamente incurável há alguns dias estar vivo neste país é como ser filoctetes a olhar o mar e tu estás num avião em rota para varsóvia e o teu luto atravessa o espaço entre três países alguns dos teus antepassados morreram no bombardeamento da cidade pelos nazis mas tu voltas para enterrar um amigo cuja morte foi parece inesperada por únicas testemunhas uma mulher e um cão e silenciosa com um livro no colo como adormecer entre um mundo de postais e livros esquecidos no chão e em mesas de cabeceira a tua dor assusta-me porque não se reconcilia com nada do muito pouco que sei de ti é íntimo meu ao mesmo tempo familiar e desconhecido debaixo de um candeeiro o teu rosto sobre o qual caem algumas sombras eros vai e vem e os seus desenhos podem ser reconhecidos em algumas paredes contra as quais conversámos mas não aqui nem agora o que eu te podia dizer é uma linha que pode remediar um rasgão mas a costura será a partir daqui para sempre visível depois de muitos meses de insónia eu resigno-me a tentar dormir a meio desta tempestade tentar acertar com o botão de desligar mas o mundo fechou-se com toda a força dos pulsos em redor do torso num país que não é este num corpo que não é já bem o teu de tudo o que te rodeia nada é ao certo o vaso que contém esta energia não é certo onde cai a falha no final deste domingo nas praias antes que a semana onde se pode morrer aos poucos de resignação e indiferença se instale as janelas estão fechadas e as casas cobertas de fuligem os meus amigos jantam em casa uns dos outros dão-me boleia para me poupar andar dois quarteirões silenciosamente dentro dos livros a humidade trabalha todo o inverno abre manchas entre os versos dos meus poetas favoritos e durante toda a semana incessantemente eu trabalho sem amor a minha actividade uma mancha sobre as horas fazendo tempo vestindo e despindo o mesmo casaco na travessia dos mesmos edifícios das mesmas ruas dos mesmos rostos indiferentes bebendo dia após dia o mesmo café à mesma hora a felicidade é a soma de alguns breves momentos quase alucinados entre o quarto e a sala imóvel na cadeira de baloiço uma caneta preta bic que contra a pele de quem adormeceu deste lado escreveu pensativamente a palavra sauvage algumas contas e conchas e papéis que atafulham algumas gavetas ou reconhecer com um ranger de dentes com a ternura da embriaguez que esta mão que se fecha em redor deste meio copo de cerveja barata neste bar que em breve vai fechar não poderá nunca arrastar os ponteiros uma hora para a frente ou para diante e não é aquela que com maior certeza se fecharia sobre um torso de mármore mas sobre a tua perecível carne perfeitamente interceptada nesta tarde pela de um amigo morto e certo é que te distraias e duvides das cartas que te escrevo ou que talvez não seja real entre nós qualquer ternura o inverno vai durar mais alguns meses comparemos certezas é também certa esta letargia que é como ser um deus do sono ou da morte que se passeie pelas ruas com um pequeno caderno onde vai apontando nomes como um delator ou mais um remador que adormeça à deriva no oceano perfeitamente só no seu pequeno barco debaixo das estrelas os remos depositados ao lado do seu corpo continuamos a pôr o pé fora de casa todos os dias mas não temos ainda mapas para caminhar sobre a água Oxford, 14 e 26 de Fevereiro de 2018
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