Pontes dentro da boca
o grito é o princípio faz ou desfaz um encanto quando grita (não quando canta) é que levanta a poeira nem o riso nem o pranto o remédio é o grito e o que vem depois do grito um grito bem dado, pode chegar à velocidade de 340 m/s e o eco do grito é ouvido 5 segundos depois de o grito ter sido dado em 2010, um concurso de grito queria descobrir quem gritava mais alto na província de Hangzhou mas ignorava os critérios de grito mais longo, grito mais agudo, grito mais grave, grito mais urgente, grito mais alarmante como quando os bebês gritam (e não choram) e dizem com isso: me pegue, me alimente, me console, me ame então ensinamos pros bebês outra fala que domestica melhor os sons e insere tom e uma intensa carga lexical (cheia de truques que evitem gritos) embora nossos ternos e civilizados sons possam soar como gritos para ouvidos mais sensíveis a certas quantidades de decibéis e, dependendo de onde se fala e se ouve, no Marrocos ou no planeta TrES-2b, um grito pode ser um som ínfimo um grunhido ou um sussurro e pode não ter poder de desfazer qualquer maldição John Cage disse que amava os sons do jeito que eles são porque o som é o único significante sem significado (mas me pergunto) e o grito? Edvard Munch quando pintou O grito recortou um grito (dentre os possíveis) e derreteu a tela em cores e formas surreais quem dera todo grito fosse assim tão figurativizado pois quando eu grito às três da tarde e o sol é ameno, o ar é fresco os pássaros cantam eu não sei o que meu grito diz e me pergunto se o eco me engana e por que diabos eu não falo a minha língua? mas se é possível medir o grito, verificar sua temperatura e pressão atender o seu pedido e ouvir e curar a dor grito, tento me acostumar comigo * como quem faz um filme todo poema é um filme mesmo que pareça uma música mesmo que tenha o de se nho de um qua dro cons tru ti vis ta (mesmo que faça vista) todo poema é um apanhado de vontade de dizer uma coisa ou dizer aquela coisa nenhuma, exatamente essa que o cinema fala mudamente todo poema é um avião levantando voo e o mato na margem, dançando de maneira absurda surdo pelo som de turbilhão na turbina surdo porque já não pode ouvir nada além de um som vazio na cabeça e uma imagem vazia diante de si (o olhar fugidio para chão do corredor) (o olhar fugidio pela pequena janela de vidro duplo) o olhar vazio que um céu imenso lança tudo como imagem posta diante de uma câmera que olha tentando criar sintaxe, pensando em fazer verso como um Pero Vaz, como um Marco Polo diante de Kublai Khan como um Victor Hugo cortesão, como um Camões de páginas molhadas com um antigo poeta, cantando como belas as guerras barbarizantes cantando como quem faz um filme * na faixa de pedestres mais próxima sonho um poema de amor que seja como um mergulho para dentro da realidade como vou no fundo da sua podridão e não te retiro de lá - porque não é possível - te contemplo ali no meio do caos do trânsito da fumaça escura dos automóveis e os trombadinhas curiosamente subindo a rua em patinetes de caríssimo [aluguel te encontro ali onde também sou pura destruição meus sapatos estão em frangalhos - e isso é metonímia pura - eu sou esse estado informe te procuro ali também é ali que estamos todos te encontro no mundo, porque você está em mim então tateio o mundo que está em toda parte esse ali-aqui esse todo-comum não é fácil furar a carne, tirar o sangue os pesados órgãos, a pesada pele abrir o vácuo e ocupá-lo mas é o único movimento possível nessa puta valsa louca
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Novembro 2021
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