quando você chega à idade que te permite entrar em novos cômodos que te permite entrar no banheiro com banheira por exemplo descobre que as paredes da casa da patroa não são tão brancas quanto você acreditava quando brincava com medo de sujar as quinas ou a bancada de mármore – você pensava é uma grande pedra preciosa quem dera eu tivesse um pedaço de tudo que eu posso tocar com a mão lavada quando você chega à idade que te permite embora o corpo inexperiente o braço fraco ainda estender o edredom com peso de dois do patrão com peso de três ou mais suores descobre marcas quase invisíveis como manchas de iogurte que nem a máquina de lavar nem a mão grossa da sua mãe conseguiram apagar quando você chega à idade de recolher as toalhas usadas vê o encardido nas pontas e percebe esfregando as toalhas (parecem de pelúcia) no rosto (parece de criança) que sua mãe está velha pra satisfazer os desejos dos donos da casa e que logo será você a satisfazer os donos da casa que dizem é também sua mas que você nunca conheceu inteira nem nunca subiu na cadeira brincando de a mestra mandou coroada de raízes do quintal – a cadeira, o chão, as paredes, os cômodos todos sujos de terra. * sentei perto dos urubus o homem que passava disse eu tenho nojo de você expliquei a ele que os urubus procuram na carcaça as partes moles e quentes ele deu as costas xingando e sacudindo as mãos olhei pros urubus eles também me olharam complacentes com aqueles olhos sem branco o homem o seu corpo inquieto era como o animal que esperneia antes de morrer sabíamos no entanto que ele não morreria que ele estava mais vivo que nós que não temos mãos nem pedras nas mãos pra atirar em quem nos causa repulsa apenas alguma intuição de encontrar partes moles e quentes. * a câmera em close na velha a pele rachada do rosto em contraste com a pele mole dos braços do vestido se vê os ossos do peito os seios dois sacos vazios pendendo sobre a barriga a câmera abre vê-se um repórter com camisa de botão de cor tão clara como sua pele tão clara o repórter parece um erro na casa de taipa a velha mexe a sopa com uma colher de pau é sopa de quê de papel close nos olhos de espanto do repórter que já sabia a resposta por que a senhora está cozinhando papel porque não tenho comida mas por que a senhora está cozinhando PAPEL o repórter repete pra causar nos telespectadores aquele nó na garganta porque tenho filhos e netos diz a velha esticando o pescoço onde guarda uma garganta aparentemente sem nó aparentemente sem constrangimento de dizer a própria fome a câmera passeia pela casa panelas e canecas empilhadas um instrumental triste e o narrador dizendo que três semanas depois a velha morreu andei de um lado pro outro o que foi garota não pode acabar assim não é um filme é a vida real e na vida real eu tinha seis anos eu não conhecia o gosto do papel por que o repórter não deu comida pra velha porque ele não tinha comida com ele por que não voltou pra dar comida porque ele mora longe por que não mandou pelo correio porque não se manda comida pelo correio por que ele não pegou comida na casa longe dele e voltou pra dar pra velha ora porque ele tem mais o que fazer então por que ele foi na casa dela hã se ele tem mais o que fazer close no rosto passivo da minha mãe é assim a vida é assim mas ela morreu todo mundo morre não quero morrer com esse engasgo que engasgo não sei deve ser o papel na escola passei a brincar de comidinha socava folhas de caderno na panela de plástico tá cozinhando o quê perguntou a colega chata papel dã tô perguntando o que você tá cozinhando de mentirinha papel eu tô brincando de verdade ela virou os olhos e saiu cantando uma música alegre eu bati nela close na cara de espanto da diretora ela diz não esperava isso de você tão boa aluna tão quieta por quê porque ela estava alegre e qual o problema de estar alegre o problema é que o narrador disse que a velha morreu de desnutrição mas eu acho que ela morreu foi de fome close na cara de todos um por vez segurando o riso de deboche tão boa aluna tão quieta mas doida coitada igual a mãe. A ilustração foi concebida a partir do poema "quando você chega à idade" para A Bacana.
1 Comentário
Alice Queiroz
17/9/2020 02:47:14
excelente! poesia que dói e que ensina: "é assim a vida é assim".
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Novembro 2021
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