É um erro de linguagem, diz Sofia Ferrés acerca do ato de nomear um cão de “cão”. E essa é uma das linhas de força ao redor da qual se desabrocham, página por página, os poemas de Desmatéria (Edições Macondo, 2019). Há, além da desconfiança em relação ao signo, um desejo de se divorciar da cultura humana para encontrar além dela os sentidos originais da existência (“dom de viver sem ciência/ desocupar os olhos do mapa”).
Partindo de elementos sólidos, palpáveis, terrenos até os mais leves, aéreos, voláteis – daí a desmatéria do título –, a poesia de Sofia se arrisca ao dizer não aquilo que é, mas aquilo que seria, não fosse a existência dessa mesma poesia, pois mesmo a palavra em arranjos não ortodoxos é insuficiente para nos mostrar a beleza que o pensamento não alcança (“nesse novo Tempo/ todas as figuras/ como que são outras coisas:/ muito mais belas/ que o imaginado”). Há, também, o reconhecimento de que a existência é imprevista (ao menos para nós, que não podemos inteligir a mecânica dos acasos), daí saber que “cada dia uma construção”, ou seja, que os instantes se fazem em processo, o tempo não está no planejado e, assim como um livro, deve ser construído com a necessária paciência “palavra por palavra”. E mesmo assim saber que há o risco de ofuscar a realidade “se reúno mal as palavras”, como um caminho que se toma por engano e acaba chegando a outro destino. Pode ser que os sentimentos sejam as únicas ferramentas que temos para acessar o que não se limita a sons e sentidos, pois “o amor enfreia as palavras”. Pra quê dizer quando os corpos em contato intuem significados que superam a superfície da linguagem? Ao que parece, o mistério nos revela enquanto explicar acaba ocultando um pensamento “e sufoca-o veloz num poema”. Sem poder participar do Tudo a partir das palavras, é no silêncio (no arredio silêncio) que a busca se faz, na volatização do ser que se congraça com o natural, superando explicações racionais a partir de sensações que só o corpo entende, sensações que superam “a mais ambiciosa explicação matemática”. Da existência mais terrena, palpável, delimitada por data de nascimento, nome, nacionalidade e todos os índices que nos identificam como um ser no mundo (desse mundo) e uma vez que “as palavras/ deixam muito a desejar”, o sujeito poético parte em busca do múltiplo. Indo contra a harmonia leibniziana que diz que vivemos no melhor dos mundos possíveis, a poesia de Sofia rompe, por um momento, com a solidão das mônadas e deixa todas as combinações da existência em ato. Nessa colisão extrema, onde tudo é agora e o sujeito se transubstancia no máximo de si mesmo (inclusive o não ser), somente a poesia poderá realinhar a ordem de um mundo no qual possamos habitar com nossa incapacidade intrínseca de sermos tantos: “estou no centro de tudo/ até que um poema me conclua”. E mesmo que retornemos ao que seja rotina e percamos esse instante de silêncio em que palavras são dispensáveis, que saibamos não esquecer totalmente do que vimos e possamos de vez em quando alterar um pouco o ângulo dos nossos vícios de posição.
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Novembro 2021
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