Reforma antecipada
Na quarta-feira, João tropeçou na sala de aula, aterrando com estrondo aos pés do estudante que mais insultara ao longo do semestre. No dia seguinte, vencido pela velhice, por um aterrador sentimento de ter perdido parte das capacidades físicas requeridas para a prática de tortura em ambiente académico, telefonou ao chefe do departamento e, com a ternura que lhe era conhecida, despejou uma torrente de impropérios que teve como corolário a demissão e o pedido de reforma antecipada à segurança social. Odiado pelos estudantes, rejeitado pelos colegas de profissão, o professor agora jubilado virou-se para os livros, leu e escreveu até esgotar as leituras e os temas sobre os quais escrever. Este era animal de primeira importância no reino da selva universitária, conquistara a pulso os territórios da literatura e da semiótica, conferenciara inclusive sobre os cigarros de Umberto Eco. Depois de existência tão fecunda, faltava-lhe a morte, mas nem esta o queria para amigo. Solteiro, ainda com amor para dar, crendo que seria profícua a regular convivência com senhora educada, que lhe acrescentasse asseio e aprumo, João virou-se para as mulheres. Casou-se num estalar de dedos. A esposa, Márcia Marreca, catedrática angolana pescada numa boate de província, aquietou-lhe a alma e o corpo durante breves semanas, as suficientes para que o excelso professor concluísse que ainda não era aquilo, que a procura não terminara. Roberta Latina veio a seguir. Maria Lampreia foi a terceira. Jénifer Remexida, empregada de limpezas que vira oportunidade no casório com titular de reforma dourada, foi a quarta e última mulher que se lhe atravessou no caminho. Certa vez em que seguia o ritual de se barbear ao ritmo de tango argentino, ao mesmo tempo que desfechava frases de autoengrandecimento, tais como és o maior, aqueles pacóvios não sabem o que perderam, como tu não há mais nenhum, nem as fêmeas chegam para ti, o intelectual foi surpreendido por um telefonema. Do outro lado da linha, uma voz cavernosa, democrática, murmurou que chegara o tempo, que Deus não lhe concedia nem mais um sopro. Era a morte, a legisladora. * O semeador de tempestades Platão, pescador de dilúvios, mais do que de peixe, virou figura pública a 14 de abril de 1996, ao aparecer nas manchetes dos jornais de referência como o belzebu humano que estropiara e degolara, por esta ordem decrescente de raiva, a sogra e a esposa. Na tarde anterior, arribara em casa acartando um balde vazio, uma cana de pesca e uma cólera trazida por duas horas de frio, granizo e aterradoras ondas que chocavam contra as rochas e refluíam, não sem antes encharcarem o pescador sentado. Platão padecia de milenar enfermidade, o ciúme. Havia sido casado antes, na década de oitenta, com Rute, manicure, e mais tarde, durante ano e meio, com Patrícia, louca varrida, dessas de matar o macho à estalada, que ganhava a vida percorrendo a região com carrinha Toyota atulhada de roupa unissexo. Ambas o tinham enganado. Margarida, actual esposa, seguia semelhante, pecaminosa, via. Toda segredos e cochichos. Telefonemas secretos. Dois meses e meio sem fazer amor. Ele chegava-se a ela na cama e desprezo, chega para lá, tens os pés frios. Ele investia em flores e lingerie, marrava em cartas de amor, forçava a cordialidade, multiplicava os gestos de galã, mas Margarida, perdida para o demo, reagia com subtis esgares, abúlicos sorrisos, exclamava um ah, obrigada, dizia que querido, estampava-lhe beijo na testa ou na bochecha, e tornava às secretas cogitações que a apartavam do casamento. Nessa dita chuvosa tarde de vulcânicas iras, Platão escancarou a porta de casa, rasgou as mulheres à naifada, uma por supostamente o enganar, a outra por ser mãe de quem era – e por lhe inspirar uma náusea ou tontura combinada com vontade de vomitar – e entregou-se, seguro de ter feito o melhor para todos, especialmente para o bebé por nascer, na esquadra policial, confirmando a lei da atracção que diz que somos aquilo que pensamos.
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Novembro 2021
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