Acorda cega,
a grande flor ossificada sobre a língua. Ouve o canto do pardal que atravessou o pesadelo e sente unhas de plumagem cor-de-rosa. Envolta em luzes e fedores placentários, uma boca de defunto que procura a pulsação da magnólia. Alguém diria que se despe como um lírico animal entre colunas de dossel, um corpo nu, sacralizado de feridas, desvelado em esplendor à luz sanguínea dos lençóis. Alguém diria que não pôde suportar a fluorescência dos espelhos a abatê-la frontalmente nos malares, que não pôde sustentar a claridade das manhãs a azular-se sobre as teias que lhe cercam o sopro, o bisturi com que lhe purga o coração e desencrava o uterino parasita, a sua força de queimar-lhe as ervas podres do cabelo, a sua força de acender-lhe a celestina labareda sobre o crânio. É sobretudo uma mulher de gestos trágicos, febris. Talvez inverta sobre a boca o leite pútrido dos mortos ou assopre nas cabeças um enxame de varejas ou enfaixe, com desvelo, os calcanhares ou extraia em movimentos e pancadas toda a flora em radiância dos rins. Talvez respire a lassidão a evolar-se dos lençóis como um perfume ensanguentado de jasmins, aquela nuvem de jasmins gaseificados circulando nas narinas em estado absoluto de graça. Se acender entre os seus dedos um cigarro pensará pausadamente sobre a larva secretíssima nos dentes dos amantes, pensará nas asas fétidas dos pombos, pensará sobre carniças consagradas sobre as mesas nos domingos em que os porcos brilhavam, pensará na dolorosa, esbraseada cicatriz que entenebrece a sua lâmpada por dentro. Então aos poucos lembrará da virulência de embriões, do nevoeiro em que sangraram os seus ovos suspendidos nas cordas, de um poder fantasmagórico, excrescente, do seu hálito de lua a ministrar-lhe a genitália. Alguém diria que ainda ouve o crescimento dos espinhos que furaram a carnação das autópsias, que estremece como um pássaro de pó, entre crepúsculos e rosas. Exclusiva como a carne da donzela, como a corça a quem surpreende o forte estalo da clavina, é sobretudo uma mulher nupcial.
1 Comentário
Maria Jorgete Teixeira
26/12/2020 14:18:37
Muito bom!
Responder
Enviar uma resposta. |
Histórico
Novembro 2021
|