![]() Um dos possíveis ritmos de leitura a que Coração de boi nos conduz parece ser o da observação: parar, olhar o poema, descrever o que se vê, acompanhar seus desdobramentos, seguir adiante. Isso se quisermos mimetizar o funcionamento dos textos deste livro, que alternam meditação e descrição. Como olhar as coisas? O que se vê e o que se esconde? Como ver o que sobrevive e o que desaparece? E como nomear o que se vê? Algumas perguntas se colocam num fluxo que é, ao mesmo tempo, contínuo e pausado, e somos levados a erguer o olho deste mundo no papel para “observar as coisas que estão perto, a 30, 40 cm ” e tentar falar delas. O poema 2, todo feito de descrições de ações rotineiras que não costumam ser nomeadas (como tomar um copo d’água), termina com um gesto que, por definição, não se encerra: “continuar, continuar”, diz o verso final, levando o leitor para o texto seguinte e reforçando, com a repetição do verbo, essa ideia de um fluxo entrecortado por pausas. O recurso serial que organiza o livro é mais um elemento que colabora para o ritmo de leitura. Somos conduzidos por 72 poemas numerados e, pouco a pouco, nos acostumamos a ver o mundo, a “olhar, olhar muito / os objetos”, observar o que temos aqui, agora, diante de nós. A extensa lista com verbos e situações ligadas ao olhar e ver também nos educa ao exercício: olhar os objetos da casa, a sala, o rodapé, o teto, um elefante, o mar, os poemas estirados, a saliva cintilando... ver os caminhos das minhocas, a réstia lilás da luz de manhãzinha, enxergar os braços, notar, observar as coisas etc. No poema 54, em que as baleias são vistas de longe e são quase uma miragem, há uma tentativa de precisão que serve para reiterar a prática: “ninguém pode ver as baleias / de perto porque elas não podem / de verdade ser vistas / as baleias podem apenas ser avistadas”. Com esses versos, entendemos que não se trata apenas de ver/observar, mas de como ver/observar e como nomear o que está ali. Como levar essa matéria para dentro do poema. Já no poema de abertura, o homônimo “Coração de boi” – que pode ser lido como uma espécie de poética do que a autora propõe – estão resumidos alguns dos elementos que busco descrever aqui: a alternância entre meditação e descrição, a tentativa de olhar e nomear as coisas e a atenção ao detalhe, ao comum, ao que não temos o hábito de notar. Neste poema, o coração do boi está imóvel sobre a pia de granito e, conforme ele vai esfriando, deixa de lado sua condição viva para se equiparar ao grau da pedra em uma espécie de troca pelo contato: “o músculo absorve / a friúra do granito e lança nele / seus desejos de sempre (…) como tudo o que nele era / pastos, pelos, as tetas esplêndidas / das vacas de leite / e em pouco tempo tudo dele se cala / se equipara ao grau da pedra” (p.9) Assim, tudo o que era vivo no coração do boi “se cala” para poder chegar à friúra do granito, numa espécie de transformação pela pedra que lembra uma extensa família de poetas das coisas. Neste poema, especificamente, penso no Drummond de “O boi vê os homens”. Se, nele, a prosopopeia leva o boi a falar e emitir seu ponto de vista sobre os humanos, suas formas e hábitos, o gesto de dar a voz a outro chega a um resultado que é bastante humano no fim das contas, com linguagem humana e preocupações e juízos humanizados, muito embora seja um humano descolado do lugar comum, um humano “ressignificado”. No livro de Ana Estaregui, a princípio não se toma partido de um ponto de vista específico; muitas vezes os verbos estão no infinitivo, em outras, o sujeito é indeterminado ou há situações em que o verbo está no plural ou na segunda ou terceira pessoa (“alguns”, “as pessoas”, “alguém cantando”); em certos casos, claramente há uma primeira pessoa com sua própria subjetividade expandindo o mundo mas, em outros, os bichos, muitos bichos ocupam o espaço do poema (o búfalo conduz o poema, um cavalo pode mudar seu curso, há abelhas na piscina, mosquitos, caracol, baleias ao longe, galos cosendo manhãs, mofo, urubus etc). Em suma, a aproximação de outra voz não se dá exatamente por meio de um ponto de vista específico, como no poema de Drummond; recorre-se, ao longo do processo, a uma espécie de dispersão em relação à enunciação. Porém, o resultado também se aproxima de um tipo de humanização ou ressignificação. Ao tomar partido das coisas e do mundo, por meio das próprias coisas, os poemas levam o leitor a ver esse novo mundo, a entrar nos poemas e acompanhar as metamorfoses que ocorrem: o tempo passando, a luz que se transforma, as trocas entre as coisas que existem dentro desta linguagem, desse ritmo de leitura e de observação, desse novo mundo que passa a existir. Se o coração esfria e se aproxima do granito, também o granito vira coisa viva na linguagem do poema e carrega a memória do boi, reforçando a ideia de troca. Vale a pena citar um poema do livro anterior de Ana Estaregui, Chá de jasmim (Patuá, 2014), em que a autora põe em cena uma gata (bicho já mais humanizado que o boi) para brincar com Francis Ponge: a gata sobe numa xerox do livro Le parti pris des choses, afofa com as patas o calhamaço de papel e se acomoda, tomando partido das coisas. O processo de “troca” descrito no poema anterior se evidencia aqui: a gata marca o território e se acomoda sobre o livro de Ponge, mas também se apropria do gesto pongeano, tomando partido das coisas, mostrando que, na linguagem, os dois passam a coexistir e se contaminar. Por fim, volto ao poema 2, já citado no início, que descreve ações cotidianas e automatizadas, que fazemos sem nos dar conta, como tomar um copo d’água ou levantar da cama: “levantar da cama / sempre pela lateral / girar o corpo noventa graus / primeiro o pé esquerdo no chão / depois o outro / as mãos apoiadas sobre o colchão / então flexionar os joelhos / e impulsionar de leve” (p. 10). Aqui a autora parece pôr em prática o que a epígrafe de Adília Lopes anunciava: “o que faço é conviver: pôr a minha vida em comum”. Mas o poema vai além da convivência e do compartilhar do comum. Ao trabalhar no registro da observação e descrever ações quase banais, ele inventa um mundo onde levantar da cama não é um conjunto de gestos automáticos, mas versos que trazem a estranheza de um manual feito para alguém que nunca se levantou. Assim como os textos do livrinho Remarques, de Natalie Quintane, que são pequenas observações de ações rotineiras, esse poema acaba inventando tais ações na linguagem, como se pudéssemos passar por elas pela primeira vez (outra vez), já que agora estão nomeadas e por isso passam a existir. E, deste modo, podemos “continuar, continuar”, num exercício permanente de chegar a outros mundos.
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Novembro 2021
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