O CÃO QUE ME TINHA Eu tive um cão ou era ele que me tinha e me deixava à solta guiada sem saber que ia. Tomava as minhas feridas, a tristeza que eu pudesse ter e sofria dela como eu nem sofria. Trocava de mal trocando-lhe as voltas. Punha a coleira ao pescoço e levava-me a passear como se eu fosse o dono. E à noite dormia no chão ou então fingia. Eu acordava com um servo aos pés da cama, armava-me em amo e era ele que me tinha. Exímio no silêncio e no uso das armas com que me defendia de todos e também de mim: a linha veloz do pêlo luzidio, o frémito da língua, o focinho em arco para a escuta. Era um cão que me tinha e uma tarde de verão atirei-lhe um osso gostoso antes de o deixar no canil. * PORCELANA IMACULADA Ovo quente, porcelana branca, colher ao lado. Golpe seco, a clara mole e a gema a escorrer. Ovo de bolso, 3 minutos e uma galinha que durou pouco mais. Pintainhos na trituradora e as fêmeas crescendo para os ovos estrelados, os bolos e as delícias conventuais. Pior que favela: sem armas ou droga para uma overdose antes do espaço ser menor que o tamanho do corpo. Nas favelas sempre se tem alcunha e muita raiva. E manha para fugir ao medo. Aqui é o número dos ovos que nos conta os dias. Um homem senta-se na mesa em frente ao meu último ovo. Lê o jornal e nada. A empregada prepara outro, quentinho. Se calhar eu podia ter vivido menos um ovo ou dois. Tido um nome por um dia, um nome estilhaçado dentro da porcelana branca. Por esse dia de mentira talvez acreditasse em ti, Senhor. * CRESCEI E MULTIPLICAI-VOS Hoje é dia de arraial. Esses arraiais de fim de verão em que todos bebem e ninguém é feliz. Não tarda que a aldeia aproxime a faca, as panelas fervam e eu exale a minha carne tenra ensanguentada: a minha carne engordada para este ou outro dia. Pode uma vida ser só a preparação para um banquete ou a refeição mais banal da casa? Ter fé em deus é saber que nada é padecido em vão: um uivo de tristeza, um zumbido de dor, um cacarejar de medo: porque deus é bondade pelo servo mais pequeno e pelo infinito. Afinal ter fé é só acreditar que seja fácil a digestão da minha alma. Quanto ao corpo, só espero que o galo venha depressa comer-me. Uma foda sempre faz esquecer por uns minutos a música da morte. * AS VESPAS DE PALERMO A virgem sorri-me com boca de mosaico, os meus olhos mergulham nos arabescos do chão, geometria do sol descendo as ruas de Palermo. Insectos aceleram bzz bzz até nas passadeiras e Cristo impávido na igreja em frente. Mas Cristo não atravessa as ruas: está um pouco acima da cruz, um pouco antes. Os anjos abandonam a escuridão do templo. As vespas parecem pirilampos e bzz bzz são as asas dos anjos conversando sobre os turistas do dia. O bzz bzz das vespas cá em baixo é de encontros na noite de Palermo. Assentos tão etéreos com um copo na mão, a outra na cintura e nos punhos das vespas, vespas, vespas atordoando o riso, o beijo passageiro. E já os anjos estão a postos na sua nudez redonda enquanto as vespas dormem um sonho de alcatrão. A ceia prepara-se. Cristo não nega o seu lugar à mesa. Entre um bzz bzz e outro, olho-te no b barroco ou bizantino e não aceito a tua morte, tu que atravessas acima das vespas, vespas, vespas, acima do Etna que sobe ao céu enquanto dentro se cozinham os infernos: a tua ceia, os restos que deixaste para nós no microondas. CARÍCIA DIVINA Cordeiro do Senhor nunca queiras escravo. A lua como uma hóstia branca ilumina o meu corpo a deslizar no teu. Porque deus é amor e nós fi éis. Porque nos fez com uma carícia assim te acaricio e me cobres de felicidade pela noite dentro. Bendito seja quem assim ama. Livrai-nos Senhor de todos os cordeiros e dai-nos um ao outro cada dia. ![]() Os cinco poemas integram o livro "Gado do Senhor", & etc, 2011. A ilustração foi concebida a partir do poema "Carícia Divina" para A Bacana.
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Novembro 2021
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