HÁ UMA PALAVRA
Há uma palavra para o ato de admirar animais nas nuvens objetos, coisas palpáveis ou não tanto assim como anjos loiros adivinhação pela forma das nuvens: o futuro num fiapo branco, o futuro a galope do nimbo carregado e essa palavra não é cartografia, atlas, biografia. Essa palavra pode falar de um farol, vejam como é ainda mais alto em noite de tempestade, tremor, tumulto e ali janelas abertas, admirem as janelas abertas de par em par a dar para nós, ali não há olhos de assunto arrumado mas talvez a revelação do maior segredo, este é o maior segredo para acontecer o extraordinário há que viver o ordinário com espanto. E afinco a lavar as janelas que se movem lentamente para a direita, o vento empurra-as, que fazer, com o susto ainda se fecham e depois alguém procurará a origem do barulho, alheados do céu, procurarão mais à frente mais à direita mais enterrados como caninos na carne das presas e ali vai uma fugindo da nuvem mais rápida parece ter os pulmões à vista e vida no ventre a presa prestes a ser engolida, cria por nascer e se todos os mamíferos têm pulmões, só alguns amam – eis uma possível definição. Protejam-se, por favor, vem chegando o vendaval apagará tudo para escrever de novo, semeará a expectativa e o anúncio do perigo, soa o alarme e as janelas não se fecham, cuidado assim entrarão as árvores furiosas e como podem arder as velas, como podem? Nefelomancia, essa é a palavra. * SÃO PAULO Era uma janela muito alta a vida corrida lá em baixo admirei a altura e as luzes vermelhas na noite de São Paulo no meio da sala a cadeira de couro castanho claro giratória, eu girei eram tão grandes as janelas tão altos os prédios eu girei para entrar havia a palavra-passe depois do portão outro portão então ficávamos na gaiola uns segundo até o porteiro reconhecer no nosso rosto o rosto que pode entrar. Pode entrar, pude sentar-me na cadeira giratória olhar a janela alta olhar as janelas em frente as pessoas lá dentro nas rotinas de fim do dia e as pessoas que ainda não tinham chegado não tinham chegado havia algumas nas cozinhas despindo-se fumando olhando-me a mim que as olho também olhando os carros lá em baixo porque as luzes encantam e porque há esse mistério de pessoas fundindo-se na noite. Havia esse mistério. * VÉRTEBRAS A Se pudesse contar-me vértebra a vértebra mas nada sei dos meus ossos ou órgãos ou ideias B Uma pessoa parada pode ser uma pessoa em movimento outra em movimento pode estar parada há eternidades C Uma pessoa pode limpar os vidros e não os olhos D Outra pessoa tem os olhos limpos e as janelas imundas E Uma pessoa pode sentir ser uma pessoa outra sentir ser muitas pessoas um planeta todo o cosmos F Li que nascemos com 33 vértebras 7 vértebras cervicais 12 vértebras torácicas 7 5 vértebras lombares 5 vértebras sacrais 4 vértebras no cóccix G Amanhã estudo os órgãos H Talvez depois de amanhã as ideias * CONFINAMENTO Ao evitar os espinhos, pegando a rosa pelas pétalas muito delicadamente, houve esse cuidado, ficaram todas na palma da mão pétalas tenras atiradas à água com susto e remorso. Aprender a cuidar as flores é fundamental domesticar o alvoroço desatar o embaraço e ouvir a noite dizer já vou, nunca mais chegando e já é manhã refulgente. Não tens onde repousar a cabeça então fica a saber qualquer coisa nova iambo, uma sibila átona e uma tónica talvez faça um diário de bordo daqueles em que a luz é demasiado forte, importante é evitar a queda fatal. Diga-me, por favor, o que feriu este poema? Tem olhos de animal enjaulado correndo contra o sol, atordoado, tem palavras de chávena de porcelana dessa tarde cheia de tempo. Mas não podes serenar, aí começa o fim. * ROMÃ É fácil ser, descasca a romã em silêncio ouvindo a fruta despedaçar-se polpa agridoce carmesim alvéolos para respirar as finas películas coladas à pele tingida dos pequeninos bagos vermelhos as mãos quietas estranhando o silêncio os pequeninos bagos os pés pequeninos a boca em forma de coração e silêncio o peito a encher-se de leite.
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Novembro 2021
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