Noturno N. 3
as nuvens estão baixas e cinzentas como carvão queimado a lua – um pingente barato ou, talvez, a coisa em si, satélite não apareceu no firmamento o céu está despovoado – há no vento um presságio insignificante quiçá, um barulho nos cômodos do apartamento mas certamente não um chamado ou um embuste tudo é excessivo para aquele que busca colmatar as lacunas – meu corpo está aberto como uma vala seca de rio, exposta e indefesa aos vazios que a noite carrega na transparência opaca das coisas não chegaremos muito longe todos os espelhos foram quebrados desde o expurgo do último metafísico nossos olhos piscam, confinados em arquiteturas não virá a nave com que atravessaríamos as veias escondidas deste breu mas nunca se sabe a cadência dos meteoros que podem riscar o céu não esperes o fulgor de uma eternidade de que não saberias o uso a noite é este brilho interrompido – para nós, que esperávamos a razão total sob a glacialidade de uma estrela mas é nesta noite – e não em outra maior que nos cabe perceber a sua chama pura e inútil, o seu afago tão largo como o vento, ó morada transitória do sentido, onde, por um momento apenas, nossos corações se acalentam e depois se extraviam * Reiterações sobre um tema o vento no canavial as bandeirinhas de Volpi os leões que Hokusai desenhou todos os dias por 219 dias até morrer a forma não se atinge nunca na reiteração das coisas no tempo as coisas – elas mesmas são outras e tu outro és e o café as camisas brancas o assoalho da casa, o qual pisaste e tornarás a pisar, numa configuração nunca idêntica, porque a madeira desbota e teus cabelos vão a cinza viver – eis a fissura é estar inacabado até o fim * Rua dos Pinheiros é sábado 23 graus na rua dos pinheiros faz um dia bonito de sol passeamos pelas lojas e calçadas cela prova uns óculos e eu termino comprando um par rafa diz que me caiu muito bem mesmo sacamos umas fotos e uns sorrisos e as palavras de sempre vez ou outra diremos tu és louca, igual a painho ou mainha, tanto faz, e em cinco minutos esqueceremos de propósito, deixo que se conduzam à minha frente na distância certa das lembranças minhas irmãs se balançam como os raios do sol na folhagem tudo está tão fresco e novo devagar aperto os olhos tento fixar na memória este momento que se libertou para sempre de todos os outros momentos este momento em que despreocupadamente descemos a rua dos pinheiros e sequer percebemos que somos felizes mundanamente felizes como só os homens podem ser * Convite A terra abre suas pálpebras e oceano e céu são um convite ao fim do mundo os seus cílios são brancos cúmulos na dissolução da tarde há um incêndio de sombras e sangue púrpuro, sem qualquer ruído é apenas o sol deposto e a passagem do dia, um estremecimento forte da pele, um respiro mais fundo e as velhas questões acossando tua consciência irredutível de estar vivo agora e não depois então diz adeus, despe a tua condição de forasteiro deixa que a tua matéria seja a água e o esquecimento do gosto acre da saliva deglutindo a seco o contato incômodo com a existência os dias que foram, os dias que virão teu medo mais derradeiro tua angústia mais inominável deita-os na coluna de espuma enquanto o corpo é envolvido pela escuridão, que não te pede absolutamente nada, a não ser o silêncio profundo da tua alma e das tuas obsessões calidamente cultivadas escuta só o corpo latejando na concha fria do universo, reverberando abandonos e o êxtase da solidão escuta esta canção de muito longe, que todos os homens, em todas as épocas, já ouviram, sentindo a escassez infinita de si ante o pálio frio e espectral das estrelas este ar, este mar não te saúdam mas te recebem se tu deixas a ti mesmo para trás
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Novembro 2021
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