III
vou te dizer, meu bem como é fácil acertar alguém na cabeça no ombro esquerdo e até no coração é preciso disciplina e antes de mais nada a vontade de provar coragem olhar bem nos olhos e acertar o peito [em poucas tentativas] acordar todos os dias às 5:53 da manhã pra provar que ainda é possível preservar a mira de anos atrás rápida intrépida e certeira a sede e o receio de acertar sem ser acertado sabe o mais difícil é acetar os pés e as mãos inquietas eu apostaria uma grade de cerveja no bar aqui perto assim que conseguirem o aval dos bombeiros para reabertura que tu consegue acertar mais rápido meu peito do que eu alcançar teus pés eles estão cada vez mais fincados em terra meu peito cada dia mais aberto na tua direção e manso sem correr risco de fazer bom marinheiro eu cronometrei aqui e ganhei a aposta é difícil acertar teus pés quando eles só se mostram pra mim como raízes concreto mistura de brita com cimento e meu peito cansado toda vez que é acertado pela tua cabeça fica mais lenta tenta se agitar pular a faixa de areia e quebrar a calçada que teus pés formaram mas recua quer ser maré baixa pra molhar teus pés e se agita quer ser maré alta para alcançar tuas mãos ser tocado por elas mas o que eu queria mesmo era que tua boca acertasse a minha em cheio em tempo recorde mesmo que eu já tenha jogado o cronômetro fora. * IV incrível o poder de cura das raízes viver imerso à tanta terra vez ou outra absorver o que vem de cima a fim de enriquecer o todo que lhe cabe incrível a força das raízes o delicado quebrar de calçadas que nem deveriam estar ali ter a coragem de se expor sinalizar que mesmo o mais profundo pode ser visível cortam-se seus troncos mas as raízes se sustentam podam-se as folhas mas as raízes fazem com que elas brotem ainda mais bonitas incrível a dor de uma raiz quando morta sem raiz tudo morre sem qualquer tipo de profundidade as coisas flutuam e flutuar precede a queda e a queda não metafórica o risco da ausência de raízes é a produção em massa de abismos no abismo nem sempre se tem alguém para recolher os corpos no abismo é tudo terra tudo pedra ou tudo água nas raízes tudo se mistura para o bem ou para o mal incrível o dificuldade de compreendermos as raízes de enxergá-las e achá-las incríveis como tudo que não se mostra às claras ser raiz é se distanciar do que é fácil talvez dissesse uma raiz se pudéssemos entende-las um broto de feijão consegue fixar raiz em uma bola de algodão a árvore da rua da união foi cortada pelo risco das suas raízes fora do solo a árvore poderia cair em cima dos carros profundidades em pleno risco alguém migrando de uma cidade para outra alguém admitindo amor tudo que quebre fixe e ultrapasse a parte rasa da piscina incrível o perigo das raízes. * V cabeças para fora dos apartamentos e das casas janelas apagadas que loucura todo um mundo parar para olhar a lua olhar a lua fazer um movimento natural será que ela sabe o fascínio que as pessoas têm por movimentos naturais? será que ela sabe que toda uma gente olha para ela? eclipse é um exercício de repetição com pausas às vezes pausas seculares e essa estrela ao lado dela? minha mãe sempre me disse que é um planeta um planeta de vigília ver um planeta a olho nu é uma graça ver a lua se descobrindo é um plano que deu certo dizem que no eclipse da lua de sangue é melhor não botar intensidade em nada a lua de sangue veio sob um sol regido por leão não me peçam para acumular intensidade faz mal a lua se descobre aos poucos e eu fico pensando em que ponto da descoberta tu olhou para o céu em algum momento tu olhou para cima? agora a lua é metade sim metade não metade brilho metade pólvora em algum lugar do país chove e não é possível ver a lua se descobrir em algum lugar dentro de mim se aloja a incapacidade de passar muito tempo olhando pra lua e eu não sei por que na rua ao lado uma criança gargalha sem dar a mínima para o eclipse ou para as pessoas com as cabeças para fora de seus apartamentos e de suas casas em que ponto do estado tu tá? tá acabando o tempo em que ponta da vida a gente tá? tá acabando o tempo tá tudo muito silêncio e na rua ao lado a mesma da criança gargalhando alguém grita: - damião, vem ver o eclipse, ainda dá tempo.
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Danae Sioziou nasceu em 1987 e cresceu entre Karlsruhe, Alemanha, e a cidade de Karditsa, na Grécia. Vive e trabalha em Atenas como promotora cultural. É co-editora do jornal literário Teflon. Tem poemas traduzidos em oito línguas e os seus poemas foram incluídos na colectânea de poesia contemporânea grega Austerity Measures (Penguin, 2016).
Estas são as primeiras traduções dos seus textos para português. Οικιακά – Trabalhos domésticos Se calhar não percebeu E nem reparou mas continuou a cortar as mãos depois de descascar as pêras. O sangue fluiu com gentileza pelas linhas do destino da vida do coração até ao ralo rodopiando entre pratos sujos e restos de comida. Aproximou-se inquieto o seu gato com uma compaixão sincera começou a lamber as feridas enquanto por um breve momento ela se contemplou no reflexo vítreo dos olhos felinos uma estrangeira presa numa gaiola suja um telhado que não conhece o nascer do sol pequenos besouros no chão e na pia as mãos encharcadas num lago escuro que agora brilha coroado com a espuma branca do detergente. Das profundezas da pia nascem todas as luas cheias as luas brancas pensou deixa-me ao menos acabar a louça hoje Danae Sioziou (Grécia, 2008) Publicado em 'Austerity Measures: The New Greek Poetry' (NYRB Poets, 2017) https://youtu.be/k_PtsaEBfaI * Um assalto (2018) Ao abrir a porta da minha casa vejo que a poesia é um privilégio como os brinquedos caros da infância ou a enésima audição da tua música favorita em condições acústicas perfeitas como um beijo dado pelo amor da tua vida como milhares de póneis brilhantes como a vida noutros planetas como o mel que se dissolve completamente numa chávena de chá como rebanhos de trovões à distância Eu gosto de escrever poemas porque escuto o começo da minha morte mesmo que as pessoas não gostem ouvir poemas Eu gosto deste som a maneira como se põe em ordem as palavras a maneira como assaltam uma casa segura Gosto de escrever poemas a maneira como os gatos gostam de se lamber ao sol e eu quero ser boa nisso. eu quero ser boa nisso. * A Flecha (2010) Anda cá e brinca comigo. Desabotoa os meus botões um por um e por cada um deles contar-te-ei um sonho. Verás como as minhas costas nuas formam um arco. Por desenhar. Quando puderes, tenta esculpir aqui, peço-te, uma flecha. publicado em 'Useful Children’s Games', Harlequin Creature, New York 2016 [where poets don´t go]
você me fala sobre os rastros é impossível viver sem deixar vestígios eu queria partir (pra onde?) mas as células mortas que caem do meu corpo o tempo todo anunciam que estive aqui & ali os fios de cabelo soltando-se tocando os chãos demarcam os territórios nem sempre conquistados como mijo de cachorro meus passos num all star vermelho fincam bandeiras nas crateras das ruas nada e tudo me pertence. * nos enganaram de novo a gravidade não é uma força e sim uma distorção no espaço-tempo. faço escambos teóricos com einstein explico-lhe a poesia tosca do vento e dos sonetos alexandrinos; ele me conta que o sol não pega fogo apenas emite energia por fusão nuclear, a terra não gira em torno do sol mas em torno de um centro de gravidade formado por todos os planetas do sistema solar e esse ponto pode estar fora do próprio sol desacorçoo e falo do som dos passarinhos, da linguagem carregada de significado até o mais alto grau de compreensão humana, dos risos espontâneos dos bebês recém nascidos, da terapia wittgensteiniana esclarecendo conceitos fundamentais do campo educacional. o velho albert sorri e depois como uma criança impaciente e deseducada mostra-me a língua. * comer a chuva com o estômago vazio mais uma vez pingo a pingo até sentir sede correr ao relento desafiando os resfriados que chegam mais fácil com o avanço dos anos sentir o solo nu nas solas nuas dos pés plantar-se sem deixar raízes se acostumar com o silêncio jamais acender as velas ou os lampiões não sorrir à toa gastar as horas contemplando o pasto árido o dia de amanhã vai ser inédito igual a todos os outros que já vivemos Máscara em carvão
Com firme leveza o polegar e o indicador da mão direita seguram o lóbulo de cá. Os dedos da mão esquerda agarram sob a lateral do queixo, e ajudam a destacar o caos. Descolando em direção oposta aos anos em cativeiro. Da direita para a esquerda. Enquanto tombam a língua e os globos, enquanto se afunda e se afoga na expectativa, fuligem vaza das órbitas. Já no outro extremo não se enxerga nada suspenso. Nem estruturas de giz que deveriam apoiar nosso ponto de semelhança. Enxerga-se o que eles são: Nosso dorso seccionado em fatias atlânticas. * Apartado Acontece que hoje sinto-me apartado da semelhança. Minha comunicação formou-se estrangeira, Falta-me a coragem nos dentes para oralizar o mundo. Não tenho mito fundador que me represente. Questionáveis heróis de questionáveis virtudes Têm aqui seus nomes eternizados. Sinto-me apartado da semelhança, A terra não queima sob meus pés, Trovões emulam peitos alheios, Minha cor não é tua. A única superfície de contato A identificar é o trauma pretérito. O dorso atlântico reafirma a distância De quem foi posto a partir Para estampar outra paisagem. Sinto-me apartado de mim E dos outros que enxergo sob o sol Que, for onde for, Não me pertence. * Manequim Imagem concreta Eu me banho em sua beleza. Para mantê-la mascaro a virtude, Abraço a vaidade. Texturas sóbrias com adornos de hipnose. Diante de mim: a infinitude. Sem comunicação somos eternos. Moldura neotropical Esta beleza não te pertence; Não me pertence. A realidade me mastiga Porque a verdade te evanesce. O corpo, o movimento Alguns morfemas em rotação Arquitetam a estrutura dos músculos de sua face Para a abjeta censura da natureza. Para ti murchou o coração hipertrofiado. És fantasma opaco, Manequim de ilusão. * Balão vermelho "Quem quer brincar põe o dedo aqui, que já vai fechar o abacaxi." E foi dada a largada: Pequenos em debandada. Eufóricos, pertencentes Cada um a mesma agitação. O mundo inflava e se desmancha nos braços da mãe Como retribuição ao que o dia oferta. O tempo correu tanto (corremos tanto), Cansou tanto (cansamos tanto), Que não houve tempo para lembrar Qual a ventania que nos deslocou. Não existia a ideia do núbio e o que ele carrega. No entanto já existia a cor, a preterição. A hora era de brincar e deixar passar. Os grandes não queriam dor em nosso espírito. E que os piores dias fossem como aquele do balão perdido. Longe, na distância da memória, O mundo era um balão vermelho. * Desencantamento O chão fora cuspido Três vezes Pela mesma boca. Dizeres de promessa para que não falasse, E que nada emitisse se a tal ousasse. Assim bruxas e bruxos sujos Ameaçam de crianças a marujos Que despedaçam juntos suas ganâncias E segredos, sem medo do espiritual degredo, Em desafio à comunicação. "Que fique roxa a língua E finda rota a boca em inanição. Não beberás da poça, Não comerás do pão. Não dirás 'não', muito menos 'sim'. Cuido que tal seja teu único fim". A musculatura inchada, seca e porosa, Resiste à cultura da praga rogada. Reage, flexiona, ofende e ovaciona. Para sempre desarticulada a vontade do calar. É o que se pretende dessa gente que invade A barreira posta entre dentes. É o que se entende. O que se defende De qualquer feitiço três vezes cuspido. |
Histórico
Novembro 2021
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