O fulcral socorro dos bombeiros e uma pitada de sorte, sempre necessária para o sucesso, pouparam o vizinho Alcibíades de morrer asfixiado em brincadeira sexual praticada com efebo mascarado de homem de negócios. Dado o asco causado pela possibilidade de brincar nu com a esposa baleia, Alcibíades não vislumbrara melhor remédio para saciar um dos seus infinitos fetiches do que desembolsar parte do dinheiro destinado ao pagamento da prestação do carro a jovem prostituto que não se coibisse de lhe apertar o pescoço durante o coito. Deu-se o caso de o rapaz lhe ter apertado demasiado o pescoço e de, a meio do prazer, Alcibíades ter perdido noção do espaço e do tempo, ao ponto de julgar estar à conversa com o diabo quando o prostituto o tentou reanimar com uma saraivada de estaladas nas arroxeadas bochechas. Transportado de urgência para o hospital, ainda com as vestes de bailarina no corpo e batom nos lábios, Alcibíades despertou numa maca, indisposto com o hálito oriundo da apodrecida caverna bocal da esposa. Chocada com a visão do marido vestido de mulher, com as marcas das manápulas do rapaz na garganta do príncipe que a levara ao altar douradas décadas antes, a senhora escarrava balas de lava, asneirava, rogava pragas aos médicos e jurava por todos os santos que no dia seguinte, antes mesmo da visita do padeiro, solicitaria os serviços de advogado que desse início ao processo de divórcio. Separando sexo de moral, e prevendo que os honorários do advogado lhe sairiam do bolso — o trabalho dela consistia em visualizar televisão e debulhar bolos — , Alcibíades pediu à esposa que reconsiderasse, alertou que uma vida em comum não se desfazia por causa de absurdos nadas, que o sexo se limpava na banheira e que depois não havia barreiras para a consumação da definitiva paz matrimonial. A mulher rasgou a camisola que trazia vestida e, despida do tronco para cima, garantiu que naquelas maminhas mais doces do que chocolate quente não tocaria ele. Embora aliviado, Alcibíades padecia de trauma de abandono, tinha fobia à solidão, e verteu uma lágrima imaginado a hipótese de desligar o candeeiro à noite e não haver quem o protegesse de pesadelos e possíveis demónios noturnos. “Pensasses nisso antes de me traíres”, exclamou ela, e abalou sem perceber que percorrer o hospital com as maminhas ao léu agravava a condição clínica de doentes terminais e acelerava o processo de envelhecimento dos idosos naquela instituição acamados. Zeloso cumpridor da lei, polícia de plantão atreveu-se a puxar atrás o cassetete e ameaçá-la com algemas e prisões, mas a senhora, enraivecida e pujante, pô-lo a dormir por via de mortífera braçada. No meio do reboliço, Alcibíades, homem que havia riscado da lista uma das suas fantasias mas acabara de perder a mulher, esperneava, salivava, balbuciava coisas reservadas ao entendimento de psicólogos: “Um salto enorme, salto mais alto do que o gafanhoto. Sou o maior gafanhoto. O rei, o rei dos reis. O deus dos gafanhotos. Sou verde, castanho, amarelo. O gafanhoto esmagado pela bota da fazendeira.”
0 Comentários
Transitoriedade
Você fecha a persiana, a gaveta dos organizados talheres, guarda o ultimo copo, esvazia a lixeira, passa o peito da mão no lençol amarrotado estendido na cama, vira a almofada do sofá que de costas estava, remexe na vela do castiçal porque ereto precisa estar, sopra a poeira do cristal, arruma com o pé direito o tapete da porta de entrada, passa os olhos em tudo pela última vez e fecha a porta. Tudo o que você quer é voltar e encontrar tudo em ordem, tudo como deixou. Impossível, claro. Você pode, inclusive, nem mais voltar. * Semblante da Tristeza Sorriu para o padeiro ao saber que o pão havia acabado, e passou a mão na cabeça de uma criança abandonada. Sob chuva, parou para escutar um pedinte, cumprimentou o porteiro noturno que cochilava, e sussurrou um Deus qualquer no ouvido da alma. Ela não é disso. É que estava muito triste, e tristeza faz isso com a gente. A rainha de ouros coroa a si mesma.
Tenho o sol sobre a cabeça. Devo sê-lo, aliás. Mas afinal - onde está o baixo clero? Não vejo a minha corte. E o povo - eu tinha certeza de ter um aqui. Onde foi que o deixei? Está silencioso ou é só insosso? Todos dormem ou não se encontram. Tanto lhes faz e tanto me faz. Não há tempo, dê-me logo isto aqui. Eu mesma me proclamo, inconteste. Com a unanimidade de uma só – melhor assim. * A rainha de copas casa consigo mesma. Foi-se minha época de sentar e esperar. Meu trono já está afundado e o do lado, encolhido. Mais cedo ou mais tarde é preciso escolher me unir a alguém. Mande já embora os candidatos - todos eles, uns coitados. Nunca vi tão mirrados. Nunca vi mais gordos. Chega de baile, já comeram demais. Em tempo, meu próprio dedo é o único onde cabe esse anel. E eu me declaro – marido e mulher. * A rainha de espadas executa a si mesma. Reconhecimento depois de morta? É apenas desaforo. De que me adianta? Diga-me o que farei com as florzinhas que me jogarem além de consentir que se enterrem comigo? Não tenho a pretensão de ficar para a posteridade. De Marcar A Humanidade. Deus me livre de eternidades. Cancele as grinaldas, essas guirlandas chorosas. Impeça também os tomates, os ovos. Por fim, proíba logo que me taquem pedras ou fogo. A morte aqui é na faca e eu mesma faço as honras. * A rainha de bastões roga a si mesma. Não está vendo que estou chamando há meses e Deus não comparece? Mandei os pombos, o mensageiro real. Mandei mimos, bálsamo e os melhores bombons. Mandei um convite com meu brasão e depois disparei uma intimação. Mandei Vir Aqui Agora - nem se digna. Não está à altura, não é digno. E se então sou eu que tenho de me rebaixar e ajoelhar por aquilo de que preciso, que eu o peça a quem possa me dar - Ó, coração meu, tende piedade de mim. Fundamentação do prazer
Partem os olhos esses dragões de cor fogosa e partem as maçãs do rosto e as mãos tão geométricas belo como um tabuleiro de majongue o homem está assim condenado à solidão da boca e do sexo (do livro inédito “Colhida na areia”) * F for Friend Soube noutro dia que o rio célere de que celebremente fala uma canção não é mesmo um rio na lua Mas quem a não ser um rio que corresse na lua aceitaria eu tratar por huckleberry friend? É como se ao ouvir os vocábulos corretos eu lesse num karaoke sentidos mais insurretos Basta um pequeno-almoço no Iémen para que mesmo o que se vende na Tiffany’s brilhe como uma fraude Mesmo a poesia (do livro inédito “Imaginários”) O acento agudo no lugar do circunflexo na grafia de António | Línguas
Quero as confissões dos teus pecados escorrendo por entre as minhas pernas e por entre sussurros repetidos do teu nome de santo e quero entradas e saídas, dicotomias por cima – por baixo, encontros penetrantes entre os olhos, derretimentos dos corpos despidos, navegantes, mãos em erupção, câmaras vulcanosas no miocárdio e o sangue-lava borbulhando nos abissais epiteliais e barcos que emergem das profundezas, quero as tuas ênclises profanas como regra, as formas radicais de sussurrar tu entre dentes e as verbalizações emboladas num vocabulário arcaico e os nomes estranhos para dizer das coisas comuns e as literalidades que saem da tua pronúncia chiada e os poemas herdados de Luís, assim mesmo, com esse e todos os esses que cantas, amarrotados num só ruído, quero as palavras que dançam na tua boca, todas as rachaduras lisboetas dos teus lábios e as palavras que pulam na água no último suspiro, afogando-se por nada serem segredando-me que tu achas sonetos demodês, old school deixando-me os despedaços das escamas na orla da praia e os descaminhos das bordas, das tuas bordas que me atravessam as margens, as fronteiras entre a minha pele e a tua, essas palavras, todas elas, sal e embarcação, que flutuam no além-mar, tratado dos cabelos desgrenhados e batons borrados. * Cachimbos, pontes, jardins e pontas soltas Poesia é tudo o que se atreve e atravessa, mais ceci n’est pas une poète, ici il y a seulement une personne, un quelqu’un, trêmulo, entregue, covarde, alguém que não se arrisca, alguém que se esquiva numa dança ridícula com a solitude. A poesia não está por aqui se sonho pés em sincronia, pés sem corpos, rostos inidentificáveis ceci n’est pas une poète ou même une póesie si je dance torrentes imaginárias e imagino o dorso colado a outro que não reconheço, não há poesia para valsas dançadas sós em noites frias tampouco il y a quelque poésie pour les poèmes que j’écris em bocas fazendo ventríloquos vazios ou pour les poèmes que j’ai abandonné dans solilóquios de bolso. Não há poesia, isto aqui não é nem uma poeta, nada disto é sequer uma palavra, é só uma ilusão óptica para a tua miopia, pois bem-me-quer, mal-me-quer, pétala em flor, o que tenho é apenas um sol batendo no olho, um vento gritando na cara. |
Histórico
Novembro 2021
|
Proudly powered by Weebly