Depois de eu ter saltado a fila não-EU
com uma senha legalmente dopada em Bruxelas, a dureza da inspectora mudou. Mostra-me o seu mármore branco e polido, com laivos rosados, guardando o granito cinzento e rugoso para casos menos claros. Graças à nossa União, de facto, a funcionária (cansada) não me pede para cantar o Hino Nacional, elencar todos os Presidentes da República desde a revolução, recitar a Constituição Portuguesa. Tampouco se rala com o calvário de cruzes nas escolhas múltiplas, limitando-se a procurar a pedra de toque: «Amesterdão?» A última barreira esfuma-se. Quase me confessa uma legalidade cometida num coffeeshop.
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Projecto iniciado numa tentativa de contrariar a tendência que a fotografia impôs desde o seu aparecimento: o retrato fiel e perfeito. Para isso, foram escolhidas várias fotos de Artur Pastor, que fotografou a preto e branco, tendo um espólio que abrange desde paisagens naturais a retratos de pescadores carcomidos pelo sol. Série em guache/aguarela, com cores fortes que contrariam a reprodução perfeita da fotografia.
A biblioteca dormitava sob e sobre os passos da sua indecisão. A escritora, armada com um caderno alaranjado e uma caneta afiada, olhava em volta e tomava nota. Como sempre, o livro que acabara de ler deixara-lhe um vazio, onde as partículas irrequietas da dúvida novamente se congregavam. Os olhos percorriam a sala em busca de uma nova demanda, de um nascente amor por um estranho universo. Ao narrador atribuíra a tarefa de ordenar todo o raciocínio que a conduzira até aos portões deste panteão, ao qual tornava, como é lógico assumir, sempre que terminava um livro. Esquecia-se, por ventura, da dificuldade da tarefa que depositara a um que, habituado a forjar curtas lanças de índole poética, teria de dedicar esforço redobrado a retratar a sua angústia.
A sala, disposta num círculo tosco, convidava a escritora a desenhar um pêndulo com os seus passos enquanto revisitava vagamente os títulos dos livros em seu redor. Dispensando o decoro usual das descrições comprometidas com o registo da verdade dos costumes, o narrador anotava apenas a ausência de um tapete e a dormência de uma luz, de tinta pálida como que esquecida. As lombadas ensombravam o quarto como ponteiros de relógio de variegada espessura, alinhados em fileiras de infantaria gasta sem guerra por cumprir. O incessante tacto do mecanismo de relojoaria era governado pelo crepitar das estantes, que de vez em quando soltavam um comentário de pinho ou de carvalho, tomadas pelo balançar insensível do diário. Seria um relógio fraco—nenhuma hierarquia estrutural; nenhum algarismo sobre estas lombadas—não conhecesse bem a escritora esta anotação idiossincrática do tempo. Os títulos dos livros, enobrecidos pelo destaque central que por defeito lhes é concedido, ascendiam e descendiam, como símbolos insignificantes da mui cantada zaragata do material e do eterno. Completava-se a metáfora. Onde quer que a escritora estivesse, esses ponteiros bélicos de títulos ascendentes e descendentes a saudavam, na diatribe implícita da literatura. Explicavam-lhe, numa eufórica e eufónica sinfonia, a medida precisa da sua sepultura. Aqui, indicava Flaubert, está a razão da tua morte; além, sussurrava Montale, o cumprimento de algumas promessas transcendentais; nesta margem, sublinhava Sófocles, talvez se aninhe a memória ou a ilusão; naquela, bradava Mann, tomba o desfiladeiro da saudade. Porém, não obstante a intempérie de verbos acometendo aos ouvidos da linguagem, o anúncio da sua morte chegava-lhe em fragmentos. Os livros falavam todos ao mesmo tempo, e por isso a escritora escutava apenas aquilo que o relance breve de um adjectivo perdido ou de uma frase bem proporcionada lhe descortinava. Era pelo menos um tormento espaçado. Mas tão prodigioso na sua vulgaridade. Quantas vezes ela lamentava o melodrama moralista que era exportado por todos aqueles textos medíocres, que jaziam no sempre inútil da palavra escrita. Parágrafos inteiros de uma banalidade chata, como conversa de café erguida ao ápice do artístico. Que sabiam estes livros da vida, ainda que da vida proviessem? ‘O vivido, mil vezes escrito, jamais se torna verdade’, pensava ela, consciente da platitude da expressão. Pousando o caderno e a caneta, a escritora agarrava irregularmente a tinta que via largada nas páginas em seu redor. Lia, portanto. Toda a raiva que albergava contra estes livros ali morria. Eram, ao menos, amigos da circunstância. Tanto texto, tanta tessitura de palavras esquecidas ou embrionárias: as capas ressequidas ou lustrosas, o fio amarelado ou monótono das margens, a filosofia antiquada ou revolucionária que dava luz às palavras. Se aqui estava um desenlace de aguda profundidade, ali se encontrava a profanação de um léxico ou o funeral de um capítulo. Se nesta alcova encontrávamos amantes, naquela uma trágica combinação de referências. Fontes de letras espalhavam-se ao comprido de múltiplos leitos, alguns partilhados, outros correndo em orgulhosa solidão. Ó!, quanta exortação a um deus vago, quanta dúvida—enclausurada—na materialidade da pontuação. Quem teria tempo para ler estes livros todos? A escritora não se conseguia decidir. Uma faixa de poeira apagada cobria o terreno em redor de uma lombada particular. O último livro que lera, um qualquer romance adiando a leitura de um outro qualquer romance melhor, já começava a excluir a escritora da memória. Era sempre assim. Ao fechar da última página esquecia-se do livro que lera. Isto dificultava a sua tarefa de leitora. Toda a escolha literária, partindo deste princípio de esquecimento, era estúpida. Por que razão seleccionar um livro novo, se aquele que ainda agora terminara já se apresentava na virgindade do por-ler? Era somente o movimento de descoberta que a motivava a ler outros livros. Ficavam-lhe sempre as palavras, é claro, e uma ocasional montagem de cena: o suicídio de Emma, a bala lenta de Werther, o ócio de Quijano, o encanto de Catherine. Estes eram os blocos onde assentava a sua própria escrita. Mas pedisse alguém uma demonstração resumida de qualquer um destes livros e encontraria plantadas as muitas bifurcações da memória. Dava por si a inventar os livros que já lera. No seu Beowulf surgia Orfeo, no seu Война́ и миръ a persistência de Nebuchadnezzar, no seu Blood Meridian uma Londres coberta de fuligem. Era inevitável. Afinal, fora a escrita que a tornara escritora e não o oposto. A abertura de um qualquer daqueles ponderosos volumes trazia-lhe aos dedos o acre, o umbilical, o amável, o violento, o cansado, o sossegado, o dúctil, o melancólico, o erudito, o lânguido, o fétido, o impreciso, o fúnebre, o historiado—a precisão dos quais lhe pedia sustento. Longas sequências de letras distribuídas por sulcos de muitas dimensões, estruturadas de antemão até à raiz da sílaba, estendiam-se pelo limite do horizonte. A escritora era apenas uma outra mão, acrescentando parcelas a este infindo campo. O narrador, que escutava atentamente estas ideias dispersas, e que afinava o contraponto dos volumes, indagava-se acerca da finalidade do exercício. Sim, era um facto que a leitura era um negócio injusto. Todos os envolvidos se enredavam numa trama infeliz porque o fluxo do tempo era inapagável. ‘Desse truísmo’, pensava, ‘ninguém está livre.’ Sim, era também um facto que a leitura selectiva, que não confia no louco método estocástico, comportava consigo a dificuldade da criação artística. Escolher um livro para ler é como escolher a palavra certa para um determinado verso de um poema, como definir a tonalidade e proporção correcta de uma forma, como estabelecer a duração e continuidade de um particular motivo musical. ‘É como’, pensava, ‘obrigar a forma do mármore a dobrar-se ao reflexo de uma ideia por materializar.’ Que fazia então a escritora, e o seu narrador tão mal escolhido, nesta sala circular ladeada de literatura? Perdia acaso tempo precioso, esse chavão tão certo, em dúvidas desnecessárias e pouco produtivas. Estava o narrador perdido na consideração do seu objecto, envolto na semântica de um momento de mundana trivialidade, quando a escritora manifestou finalmente uma decisão. Os ponteiros alinhados, apontando sempre a binária dança entre o inferior e o superior, registaram os seus movimentos deliberados: a mão semi-erguida, trémula após um dia de escrita; o indicador tomado pelo êxtase da escolha, preparando-se para pousar no topo de um livro; o passo estacado; a respiração errática. O dedo pousou na lombada quebrada de um tomo qualquer. A mão cerrou-se em torno das palavras em gesto de despedida. A poeira, afastada do seu repouso, nevou sobre o soalho bruto. Refratava-se a luz sobre os tomos adormecidos, ininterrupta. As fileiras de ponteiros, no rigor mavórtico; os títulos esbatidos e luzentes; os autores no Parnaso e em Éfeso; as editoras e casas de imprensa visíveis ou rasuradas; as hostes de palavras eclipsadas em e por si mesmas; as longas linhas de pinho ou de carvalho, sustentando como traves de um templo; o tom cinzelado do soalho, esquecido da narração. Tudo aquilo que segurara o equilíbrio do mundo tão cuidadosamente arquitectado pela escritora, lapidado ao longo do tempo pela ponta da sua caneta, era agora, na insustentável decisão da leitura, abandonado ao esvurmar dos dias e desertado pelo alicerce do significado. A escritora fizera a sua escolha: os livros, escreveria uma última vez, são uma perda de tempo. Noturno N. 3
as nuvens estão baixas e cinzentas como carvão queimado a lua – um pingente barato ou, talvez, a coisa em si, satélite não apareceu no firmamento o céu está despovoado – há no vento um presságio insignificante quiçá, um barulho nos cômodos do apartamento mas certamente não um chamado ou um embuste tudo é excessivo para aquele que busca colmatar as lacunas – meu corpo está aberto como uma vala seca de rio, exposta e indefesa aos vazios que a noite carrega na transparência opaca das coisas não chegaremos muito longe todos os espelhos foram quebrados desde o expurgo do último metafísico nossos olhos piscam, confinados em arquiteturas não virá a nave com que atravessaríamos as veias escondidas deste breu mas nunca se sabe a cadência dos meteoros que podem riscar o céu não esperes o fulgor de uma eternidade de que não saberias o uso a noite é este brilho interrompido – para nós, que esperávamos a razão total sob a glacialidade de uma estrela mas é nesta noite – e não em outra maior que nos cabe perceber a sua chama pura e inútil, o seu afago tão largo como o vento, ó morada transitória do sentido, onde, por um momento apenas, nossos corações se acalentam e depois se extraviam * Reiterações sobre um tema o vento no canavial as bandeirinhas de Volpi os leões que Hokusai desenhou todos os dias por 219 dias até morrer a forma não se atinge nunca na reiteração das coisas no tempo as coisas – elas mesmas são outras e tu outro és e o café as camisas brancas o assoalho da casa, o qual pisaste e tornarás a pisar, numa configuração nunca idêntica, porque a madeira desbota e teus cabelos vão a cinza viver – eis a fissura é estar inacabado até o fim * Rua dos Pinheiros é sábado 23 graus na rua dos pinheiros faz um dia bonito de sol passeamos pelas lojas e calçadas cela prova uns óculos e eu termino comprando um par rafa diz que me caiu muito bem mesmo sacamos umas fotos e uns sorrisos e as palavras de sempre vez ou outra diremos tu és louca, igual a painho ou mainha, tanto faz, e em cinco minutos esqueceremos de propósito, deixo que se conduzam à minha frente na distância certa das lembranças minhas irmãs se balançam como os raios do sol na folhagem tudo está tão fresco e novo devagar aperto os olhos tento fixar na memória este momento que se libertou para sempre de todos os outros momentos este momento em que despreocupadamente descemos a rua dos pinheiros e sequer percebemos que somos felizes mundanamente felizes como só os homens podem ser * Convite A terra abre suas pálpebras e oceano e céu são um convite ao fim do mundo os seus cílios são brancos cúmulos na dissolução da tarde há um incêndio de sombras e sangue púrpuro, sem qualquer ruído é apenas o sol deposto e a passagem do dia, um estremecimento forte da pele, um respiro mais fundo e as velhas questões acossando tua consciência irredutível de estar vivo agora e não depois então diz adeus, despe a tua condição de forasteiro deixa que a tua matéria seja a água e o esquecimento do gosto acre da saliva deglutindo a seco o contato incômodo com a existência os dias que foram, os dias que virão teu medo mais derradeiro tua angústia mais inominável deita-os na coluna de espuma enquanto o corpo é envolvido pela escuridão, que não te pede absolutamente nada, a não ser o silêncio profundo da tua alma e das tuas obsessões calidamente cultivadas escuta só o corpo latejando na concha fria do universo, reverberando abandonos e o êxtase da solidão escuta esta canção de muito longe, que todos os homens, em todas as épocas, já ouviram, sentindo a escassez infinita de si ante o pálio frio e espectral das estrelas este ar, este mar não te saúdam mas te recebem se tu deixas a ti mesmo para trás “se é letra consoante, como alguns quiseram e o traz Diomedes gramático, há mister própria força e se a tem ou não, ou se é boa a pronunciação que lhe dão alguns Latinos, eles o vejam. Nós, Portugueses, não lhe damos mais as vogais com que se mistura. E dizem os Latinos que se podem misturar com todas as vogais”
Fernão de Oliveira |
Histórico
Novembro 2021
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