Sábados
Nunca percebi o funcionamento dos Sábados, havia Sol e musgo nas unhas, Uma merenda obrigatória que nos chamava com voz de queijo e marmelada E lá tínhamos que descer desde as fragas, isto antes dos mundos pixelizados E da fome a cuequinhas molhadas, podia ir-se ao pão, o carteiro não deixava Nenhum postal do Brasil ou da França, os sinos não tocavam e no quiosque A certeza de uma banda-desenhada depois da mesada de mais uma semana Acumulada a saliva engolida nos intervalos, a vontade de catequese nenhuma, Agora poucos Sábados são no fim-de-semana, continuo a não perceber A sua utilidade, mais um dia, para levar todos os irmãos passados ao esquecimento Num último, já não vejo televisão, os filmes tornaram-se numa imitação confortável de vida, Repetições atrás de repetições, engrossando os contornos dos padrões, Nada de novo, se não se derrete manteiga num sofá ressacado, Prepara-se um domingo sem deus, como todos os dias, Nunca percebi o funcionamento da vida no geral, não só dos Sábados, Cheguei aqui por acumular incertezas, agora não passo de um saco cheio, Um buraco negro massivo, procurando a alma em mais um copo vazio. *** Green Hills É estranho que alguém que nos conhece tão bem, já não nos seja nada, Lembro-me daquela longa viagem entre Hollywood e San Pedro, Num dia de chuva, cinzento, em direção aos ossos ou a cinza de Bukowski, Lembro-me bem do banco onde nos sentamos do outro lado da estrada, Sobre um desdobrável com horários dum autocarro que não usaríamos mais, À espera doutro que nos levasse de regresso à última noite no hotel, Há manhãs que parecem de outras vidas, sonhos que parecem nunca Ter chegado ao sono, e eu tenho falhado tantos pequenos-almoços De hotel como vidas que me foram ou são, Comove-me agora mais o sacrifício em acompanhar-me A um monte relvado perto de um porto com cheiro a Matosinhos, Para ver uma pedra com o nome de um poeta que venceu na vida com as derrotas, Devia ter-lhe segurado no cabelo enquanto vomitava, Mas o que temos como certo, nunca foi nosso, o pão fica duro, E os mesmos olhos que nos desejavam esgaçar o prepúcio até à alma, Mais tarde fechavam a porta do quarto, plantando distâncias e culpa. *** Pequeno-almoço Duas torradas finas e café instantâneo, com tão pouco se começa um dia, Com menos se começa uma vida, umas gotas apressadas de alívio, Se calhar nesse mesmo dia nascido de manteiga derretida, Na mesa as flores murcham, secam, apodrecem, lições de beleza E vida, acaba tudo em decadência e morto, todos os beijos saberão À mesma cinza e pó, não à cinza que ficava agarrada às torradas Feitas à lareira em cima das tenazes abertas em casa da avó, Não ao pó agarrado às amoras nos caminhos de verão, A noite poderá trazer mais um relâmpago indeciso, Ou somente a sua eternidade, mesmo que o dia tenha começado Apenas com duas torradas finas e café instantâneo.
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![]() O segundo livro da poeta uruguaia/brasileira Sofia Ferrés, en_vuelta, lançado este ano pela editora Laranja Original, está repleto de linhas. Do título, que nos encara com um sublinhado que não sublinha nada, somos enfrentados com essa dupla função do traçado: a linha separa, estabelece limites, ao mesmo tempo em que é elo, aquilo que nos conecta. Na capa, a própria função do sublinhado (a primeira linha com a qual nos deparamos) é subvertida pela disposição das palavras: aquilo que deveria unir as duas palavras do título se prende ao “n” e acaba em lugar nenhum. Parece um resto, um fio solto. A estrutura da obra também é dividida por uma linha que nos parece tênue: a citação de dois versos de Alejandra Pizarnik em folhas azuis divide o livro ao meio, em duas partes que, apesar de jamais declararem-se separadas (não possuem títulos próprios), não podem deixar de contrapor-se. A primeira parte nos presenteia com a “linha que se abre” com a passagem de algum outro, que deixa “a língua paralítica / suspeita no efeito / de vácuo de te ver / passar”. Aqui, a linha que se mostra fronteira impede a comunicação e desconecta a voz poética de seus arredores. Território fronteiriço e abandonado em que o eu lírico se vê preso, em que “as mãos tontas procuram / o inconsolável destino / de separar-se das suas / soltas, agora esfriam / a vida fica num sopro / contida.”. É desenhado um abismo entre a poeta, que tenta se comunicar e vê-se impedida por um isolamento que não tem certeza de onde surgiu, mas que a separa de um outro qualquer, ouvinte omisso que por sua ausência é alvo de confronto e ressentimento por parte do eu lírico. O livro em si é prenhe de silêncios. Os poemas pequenos, em tensão com os grandes espaços das páginas em branco, ou preenchidas em seu extremo apenas com desenhos isolados de conchas (também da autora) criam uma angústia, uma vontade de produzir barulho, de se fazer ouvir. As palavras, elas mesmas, são linhas que dividem, que se mostram inférteis, incapazes e impróprias para comunicação. O vácuo criado entre enunciação e realidade impede que a mensagem alcance quem quer que seja, afinal a “palavra mel não é realidade / a palavra mel não sabe ser Mel”. São incapazes de gerar o dinamismo que é inerente ao ato comunicativo, as palavras “pesam às vezes e estão mortas / entre um parágrafo e outro”. Os poemas também, sem título, jamais nomeados (com a exceção de um deles, que se chamaria [ansiedade], mas em que o título integra tanto a leitura dos versos que poderia passar por um verso entre colchetes, se de fato não o é), com versos que, coisa rara em poesia, parecem não demandar a enunciação, mas sua leitura quieta, tensa, extremamente plásticos que são. Mas nesta primeira parte já há o esboço de uma recusa que, enfim, explode. O eu lírico se revolta, questiona “quem é que tece a vida, desenha a linha / designa nascimentos e encontros?”. Surge a demanda pela negação da passividade que levou a poeta ao isolamento. Há uma confissão: “quebrei o silêncio / num copo de vidro / teu objeto preferido”. Longe de renegar-se ao papel de vítima absoluta, a poeta exige o rompimento de sua quarentena, quer se comunicar e não se acovarda pela dificuldade. Afinal, escreve. E é na transição para a segunda parte do livro que percebemos esse ato de revolta. Os poemas, agora maiores, invadem a página. Dois poemas chegam a ocupar uma página só. Ante a proliferação de versos, as conchas se mostram menos evidentes, diminuídas em seu papel de totens da solidão, de únicos encontros na praia vazia. Temos a impressão de que o livro passa a ser povoado, que aquela terra de ninguém deixa de ser abandonada. E começamos a perceber traços de uma conexão que se forma entre eu lírico e o mundo que o circunda. E é exatamente com o mundo que se estabelece esse diálogo, jamais com outras vozes. Surge um elemento natural antes impensado na primeira. As linhas rígidas que separavam a autora de seus entornos desaparecem, ela passa a se sentir integrada à realidade, representada pela concretude das manifestações naturais. Sua subjetividade adentra esses fenômenos: “em lua cheia o mar infla o peito / e eu posso cheirar a madrugada”. Os traços também passam a servir de elos com suas memórias. O recém-descoberto pertencimento ao mundo permite que a autora nos segrede “lembro de trepar pelos braços, troncos, galhos / me arranhando – a árvore me subia pelo verde”. Aqui, inclusive a experiência negativa, cicatrizante (arranhar-se, mais uma linha) nos é apresentada como elemento constitutivo de história, de uma narrativa que permita sentir-se parte de um contexto. Ainda que não social, mas natural. Podemos entender, entretanto, que o silêncio não é rompido, ao menos não de forma tradicional. O fundamento dessa nova comunicação não é o estabelecimento de um diálogo com outras vozes, mas uma comunicação com o mundo e a memória, com a própria realidade da autora. Comunicação esta, portanto, silenciosa. Mas agora o silêncio é outro, uma vez que “nesse quieto erguem-se / todas as formas que conhecemos”. Não há som, mas há comunicação, construção de um significado compartilhado a partir da experiência. No entanto, jamais entrevemos uma absoluta superação do estado de isolamento que intuímos. Mesmo na segunda parte, a voz poética é vacilante, incerta. Não há entusiasmo, mas reflexão. As conchas continuam aparecendo, sinais de que ainda há uma tensão silêncio/palavra que nos compele a continuar lendo, ainda que mais frouxo. O eu lírico se volta aos arredores (como no título), percebe aquilo além do círculo em que se circunscreveu, toma gosto por pertencer a esses arredores, mas, parece, permanece no universo circundado que construiu para si. Apenas, agora, exige o entendimento, ou ao menos sua tentativa. Até o título (assim como alguns poemas), em espanhol, nos conclama a isso. Entendermo-nos, ainda que através das barreiras que as palavras, a linguagem e as fronteiras em que nos vemos entrincheirados nos colocam. Comunicarmo-nos, ainda que em silêncio. Não. Não podia ser verdade. Ele mentia. Era impossível. Contudo o cadáver estava ali. Sim, era Irene. O corpo estava aberto, podre, negro, mas Simone e a Mãe sabiam que aquele era o corpo de Irene. Eram os seus sapatos. Aqueles amarelos com botões verdes que Irene herdara de Simone. E olhando para aqueles sapatos completamente manchados pela tinta púrpura, Simone conseguia ouvir Irene rodando sobre si mesma e cantarolando baixinho. Mas não rodava mais. Não cantava mais. Estava ali inerte e desconjuntada. Tombada na mesa da sala do Pedro. Enfiada num saco transparente.
E Pedro, levado pelos polícias, olhava para Simone com a cara apaixonada de quem troca votos matrimoniais. Parecia dizer-lhe: – Sim, eu estou a zelar por ti e pela tua família. Não te preocupes, o segredo é nosso. A tua penitência é a minha penitência. Não chores minha querida Simone. Não chores. A mãe chorava desconsoladamente, e apertava fortemente o braço de Simone. Subitamente o amor que sentia por Irene materializava-se. Descia ao seu corpo e inundava-a em pleno. Alguns amores parecem destinados a existir apenas na ausência e na recordação. Ali, em frente ao corpo desfigurado, a mãe revivia uma Irene imaginada, relembrava a promessa da criança que ela poderia ter sido, e era perante o desaparecimento dessa promessa que essa mesma mãe chorava a perda da filha. ∞ Durante toda a noite Simone nunca dormiu e nunca chorou. Quando o chilrear dos pássaros se ergueu e o céu se espreguiçou, abrindo um novo dia, Simone saiu de casa. Vestiu o casaco e apertou os atacadores. Preparou-se para reproduzir a madrugada em que Irene desaparecera. Conhecia bem o caminho que a irmã costumava percorrer até à cabana, todavia naquela noite seguiu por um diferente. Via-se praticamente obrigada a alterar o seu percurso, como se seguisse os passos de outrem. Pela primeira vez desde que Irene desaparecera, Simone sentia o medo a tomar conta do seu corpo. Os seus ombros e costas formavam um arco, conferindo-lhe a rigidez de um animal atemorizado. Queria parar, mas os seus passos não lhe respondiam. Simone sabia-se transportada pela fúria de um encantamento e da sua boca brotavam as melodias deliberadas de Irene. Em pouco tempo alcançou a cabana. O cheiro intenso das tintas atingiu-a com a precisão de uma bala. Simone sentiu-se a colapsar e as lágrimas agitavam-na com a violência de uma convulsão. Aquele era o momento do regresso. Toda ela era verdade. Toda ela era Irene. Irene a sair de casa sorrateiramente, a apertar os atacadores dos sapatos amarelos e a escolher um caminho diferente para evitar ser seguida. Irene a cantarolar passivamente, escondendo o entusiasmo da antecipação. Irene a abrir a porta da cabana e a esboçar um largo sorriso perante o segredo. Irene em delírio, causado pelo intenso aroma das tintas. Irene a transportar-se até ao rio. Irene. ∞ O amanhecer em que Irene alcançaria a cabana havia chegado. Na tarde que o precedeu a sua avó sentiu-se mal: – Ai filha, parece que o coração não me cabe no peito. É hoje. Tenho a certeza que hoje chega a minha hora. Deus não me perdoará por ter abandonado o meu filho. Ai o meu José. Deus o tenha. A vida foi tão injusta connosco. Irene soube nesse momento que essa era a madrugada perfeita para cumprir o seu plano, uma vez que a mãe não dormiria em casa. Assim sendo, de melodia em melodia, seguiu até à cabana. O seu caminhar era certeiro, sem espaço para divagações ou dúvidas. Essa atracção inexplicável e incontrolável que guiava Irene, despertava nos outros uma desconfiança, como se tanta certeza pudesse apenas brotar de uma degeneração do pensamento. Chegada à cabana, repetiu os rituais de Simone para devolver a vitalidade às tintas. Em seguida deixou-se envolver no líquido morno e espesso, reproduzindo com o seu corpo a passividade dos tecidos. Primeiro as pernas, depois os braços e finalmente o corpo todo. Ali no sabor amargo e no aroma acre da tinta escura, Irene sabia-se plena e imaginava-se plana, vendo o seu corpo a estender-se para além da linha do horizonte. Tal como uma traça é fatalmente atraída pela luz, também Irene sentia um apelo inevitável e puro, perante a beleza dos acontecimentos que escapavam ao ritmo quotidiano. O diálogo que se estabelecia entre a sua epiderme e a tinta tornava-a permeável ao mundo. Um mundo sem palavra, mas um onde a voz era mais definida, aguçada e pertinente. Um cosmos que pulsava com a cadência hipnótica de uma respiração madura e concentrada. Esse era o mundo de Irene. Sentindo-se finalmente em casa, Irene correu pelos campos que circundavam a cabana, fingindo ser uma ingénua flor silvestre, abanando o seu corpo sob as ordens doces da brisa matinal. Sem coreografia definida dançou até alcançar a frescura do rio. E tal como antecipara, abandonou-se à energia da água, consentindo a sua lavagem e restituição. Aquele era apenas o início. O princípio de algo que a envolvia e ultrapassava. E essa certeza tinha a força de uma reza, acendendo-lhe um leve sorriso nos lábios roxos. ∞ Para Pedro existia apenas um caminho. Envelhecer ao lado de Simone. Durante um mês ganhara coragem para avançar com o pedido de casamento. Na manhã em que Irene desaparecera, também ele se dirigira à cabana onde aguardaria Simone. Ao entrar foi surpreendido pelas pegadas de tinta no chão. Seguindo os pequenos pés coloridos, Pedro foi guiado na direcção do rio. Susteve os seus passos quando avistou dois corpos na margem. Irene e Simone. Sim, eram as duas irmãs, porém apenas uma se movia. Simone agitava o corpo de Irene. Sobre o seu rosto tombava uma expressão de pavor que não se libertava em som através dos seus lábios pálidos. Pedro sentia-se petrificado. Algo terrível acontecia mesmo à sua frente, contudo ele sentia-se fascinado pela cena mórbida que contemplava: Irene, com a pele púrpura e corpo abandonado, jazia sobre os seixos coloridos, enquanto Simone, envolta num xaile de lã a fixava sem emitir qualquer palavra. De súbito, Simone começou a chorar, e pela primeira vez gritou bem alto o nome de Irene. Deixou-se então cair sobre o corpo da irmã, e assim ficou durante algum tempo. Pedro observava tudo, mas nunca conseguiu mover-se. Queria abraçar Simone, porém o seu corpo tornara-se inerte como o de Irene. Desejava fechar os olhos, mas ao invés, era atraído pelo pranto fúnebre. Ele pressentia algo tenebroso, e sabia-se pequeno perante a inevitabilidade. ∞ Simone encontrara a pequena Irene a boiar no rio. O corpo despojado de vitalidade fizera-a imediatamente prever o pior. Tentou em vão reanimá-la. Agitando-a, soprando ar na sua boca, chorando e até conversando com ela. Tudo se perdia no início daquela manhã. – Irene! Irene! A culpa foi subindo lentamente pelas solas dos pés até se fixar com a rigidez de um caroço na sua garganta. Uma cascata de acusações foi-a afastando de si. O modo condicional apoderou-se da relação fraterna. Se ela não tivesse adormecido tão profundamente. Se a cabana não fosse tão fácil de abrir. Se ela tivesse arrumado as tintas. Se o pai não as tivesse abandonado. Se a mãe tivesse abraçado a diferença de Irene. Se elas se tivessem podido compreender verdadeiramente. Cada frase ardia com a intensidade de um golpe. O corpo ainda estava quente. Teria de existir alguma forma de a despertar, alguma canção que a trouxesse de volta. Simone experimentou cantarolar algumas das melodias que ouvira à irmã, e em simultâneo embalou o cadáver com o carinho de uma mãe. O sol ia subindo no céu, contudo Simone julgava-se ainda envolta pela noite. Aquele momento parecia não ter fim. A convulsão do choro deu lugar a uma calma desesperada e, num acesso de transfiguração, Simone rasgou a pele e a carne da irmã com a ajuda de uma navalha que trazia sempre consigo, e depois da primeira incisão usou também as unhas e os dedos para aprofundar o golpe. O calor e a viscosidade das entranhas tranquilizaram-na. Aquele era o calor de Irene. Nas suas mãos cobertas de sangue a irmã vivia novamente. E num acesso de nostalgia, Simone deslizou as palmas ensanguentadas pelo rosto, ouvindo ao longe a voz de Irene, como se no seu próprio rosto se rasgasse o sorriso da sua irmã. Pedro observava amedrontado, apercebendo-se da forma como o sorriso se ampliava no rosto de Simone, à medida que ela mergulhava as mãos dentro do corpo rasgado. Simone ia retirando víscera após víscera como se procurasse uma cura para a irmã no centro do seu cadáver. Mas para Pedro, que avistava a cena de longe, a felicidade no rosto de Simone sugeria a premeditação de um crime. Cada órgão era separado com precisão oriental e pousado gentilmente sobre o xaile. As mãos de Simone pareciam reféns de uma vontade exterior. Pedro não a imaginava capaz de ter assassinado a irmã, contudo aquilo que testemunhava só podia ser um homicídio. Simone procurava consolo no contacto íntimo com os órgãos vitais da irmã perdida, mas o que Pedro observava era o delírio de alguém possuído pela loucura. O que mais perturbava Pedro era o facto de se sentir deslumbrado por aquele comportamento doentio. A beleza daquele último acto de intimidade desesperada entre as duas irmãs, comovia-o. Sem saber de onde partia a ideia, Pedro acreditava que Simone pretendia libertar a irmã de uma existência miserável. De uma vida condenada à incompreensão e à acusação. Nunca lhe ocorreu que poderia tratar-se de um acidente. E que a resposta bárbara de Simone, perante o falecimento da pessoa que lhe era mais querida no mundo, poderia não ser um acto resultante de demência, mas surgir sim, como consequência do excesso de sanidade perante o abismo indecifrável da morte. ∞ Com o retorno da consciência, Simone desmaiou perante o horror do corpo transfigurado. Perante a repugnância do seu acto de profanação do cadáver. Pedro beijou a sua testa ensanguentada e decidiu então proferir os votos com que a sua noiva nunca teve a oportunidade de concordar. - Eu, Pedro, prometo amar-te e respeitar-te na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, durante toda a nossa vida, até que a morte nos separe. E encarnando o personagem do bom esposo, Pedro trabalhou arduamente de forma a fazer desaparecer todos os vestígios do crime que presenciara naquela manhã. E rezou bastante, pedindo a Deus que apagasse aquelas memórias hediondas da mente da sua querida Simone. Havia algo de reconfortante na bondade. Pedro seria eternamente um homem mutilado, todavia sentia que salvando Simone da condenação ele se libertava a si mesmo do escárnio do mundo. Finalmente, via-se perante a possibilidade de alterar o destino de alguém que amava, e essa noção de omnipotência momentânea permitia-lhe encenar uma vingança contra o Deus que o abandonara após o acidente. E mesmo nos braços dos polícias, uma semana depois, Pedro mantinha a serenidade no sorriso e a ternura nos olhos com que se despedia de Simone. Nada o assustava, não agora que se imaginava como sendo o regenerador de um equilíbrio que fora agitado pelas próprias mãos do criador. Ele devolvia estrutura e liberdade à criatura mais bela da humanidade: Simone. Simone com o cabelo desalinhado. Simone chorando pela sua ausência. Para sempre Simone. Debaixo e fora de telha
Ser-me-ia praticamente impossível, até mesmo bizarro, pensar na minha actividade enquanto ilustrador sem a presença constante de diários gráficos. Dificilmente saio de casa sem levar um comigo, por mais pequeno que seja. Disponho sempre de vários em constante utilização simultânea. Entre si vão diferindo nos formatos, gramagens e tipologias de papel mas, independentemente da especificidade, todos acabam por subordinar-se a um propósito maior: o da prática regular, seja esta de observação directa ou do âmbito imaginário, registos mais cuidados ou descontraídos, tenham estes algo mais específico em vista ou nem por isso. De um ponto de vista mais pragmático esta mesma prática do diário gráfico é-me útil na medida que me oferece um mecanismo de filtragem eficaz de ideias e conceitos, do que pode ou não prosseguir para situações mais consistentes. No seu conjunto, sempre em expansão, estes cadernos vão marcando uma cronologia pessoal, um “making of” íntimo de toda a minha produção realizada até ao presente momento. É um arquivo processual em permanente construção que documenta e testemunha de forma privilegiada não só o que desenvolvo profissionalmente como também por onde ando ou o que me atrai e motiva. Os meus desenhos em caderno acontecem tanto nas nas saídas de campo e de lazer como no relativo conforto do atelier. Por vezes a natureza do sítio onde o diário gráfico é aberto determina o que vai acontecendo nestes: a produção de desenhos de observação é-me mais propensa no exterior, por outro lado, no atelier é mais recorrente levar o desenho em caderno ao encontro da resolução de problemas relacionados com projectos. Uma catalogação de atitudes e propósitos é sempre tentadora mas aqui torna-se ingrata, até mesmo perigosa, pois considero que o diário gráfico é tanto um território de experimentação, onde não há necessariamente uma carta de intenções ou regras formais, como também é um espaço privilegiado para determinar avanços mais cautelosos. No fim, provavelmente é toda esta liberdade de acção e vastidão de possibilidades que torna um caderno um objecto tão atractivo. |
Histórico
Novembro 2021
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