Paliativo
por vezes firmo-te sobre a pele e és o simples consolo de um copo de água acautelado na mesa de cabeceira enquanto os cães do desejo me velam o sono aos pés da cama por vezes sonho contigo e és um pesadelo de suor frio entornado no escuro dos lençóis onde somos a grés da memória e mudamos de história como crisálidas por vezes ponho-te debaixo da língua e és um comprimido de nitroglicerina que me acode o coração gasto lembrando que a consciência é o carrasco do corpo e a sua única esperança como a tosse aclara a voz ou a febre ampara o corpo – é assim que preservas o meu espírito sob a forma da loucura: um contrapeso passageiro que tanto pode ser a doença como a cura * Amor fácil Sei que é fácil amar pela beleza e morrer de amor por ti (que sempre me sobrevives) – difícil é morrer pelos miseráveis e corruptos, como eu, por este instinto insolúvel de forçar a beleza em toda a parte, dedilhando adjetivos no conforto melancólico da contemplação até que as palavras iluminem o rosto e se aprenda a amar apenas em segunda mão. É ainda mais fácil amar quem me olha de volta e vê refletida a solução inevitável para a sua beleza. No fundo, é fácil amar-te com este ego empedernido de amor e sal, sequóico, colossal, de orgulho ferido por uma benfeitora que abraço com lágrimas estatuárias – e há, nos meus braços, ironias e cansaços – tomando-a, não como escultora, mas arquiteta, porque a forma do meu espírito segue agora uma função. Amo como o pavão enleva a cauda para oferecer mais olhos à beleza, mas um dia fundarei amores difíceis neste vício de morrer pela decifração, nesta mania de alinhar o azimute no reverso do desejo e continuar mudo. * Altar alheio O amor é um efeito de sombras, é esse o mistério. Se não lhe testemunharmos o centro, a ponta por onde se mede o peso de um verbo, o amor é um defeito que assombra. Por isso há que trazer algum lume no bolso, treinar o polegar e aceitar o troco, aguçando as línguas de fogo perante os grilhões do que temos por instinto. É assim que prefiro aprender a incubar a eternidade no estertor de um fósforo, do que arder em altar alheio e dormir todos os dias na mesma cama: prefiro ter orgulho apenas no contorno que se alarga ao brilhar em redor de um corpo, deixando o amor para o escuro que fica no côncavo das palavras que temos por espírito. * O sonho de uma língua comum (de Sob a forma do silêncio, 2019) Não contes nada do teu passado, a nada te ofereças, mas sonha no outro uma língua comum. Não tragas ninguém contigo, a ninguém te peças, mas explora no outro um novo limite do mundo sob a forma do silêncio. Eu amo como quem conhece um novo idioma: aprendo a nomear as coisas que esqueço, a grafia correta do vazio, o mapa dos nossos fracassos, um verbo para o meu ato de amar: a longa aprendizagem de uma perda, o sabor do que nunca será tanto quanto o montante contido nas palavras.
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Histórico
Novembro 2021
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