Aboiador II
Aboiar a dor É curar a seca na garganta Com a malva de um verso Nesta terra sou formoso E a palavra desvairada Desembestada Põe à mostra meu avesso E a palavra fremida É também amiga Do meu coração Máquina da manhã Onde expurgo os agouros No delírio Na gana De fechar o aboio Como se fecha uma rês: No limite. * Trampolim para um quadro de Jessica Brilli Eu abro as asas E meu rosto beija o céu Luminoso Abraço o sol em segundos Como uma dança entre invisíveis Oceano escondido numa ilha Em poucos metros Em infinitos cronômetros Levarei ao mergulho O tempo raio Como o repto de um pássaro No trânsito da temporada. * Casa abandonada Antiga casa Percorro novamente Seu corpo Sua carne de prata Antes que as paredes Esqueçam a fragilidade Das calhas Retornem Ao Pó E as lembranças Se desabriguem Se revoltem E a pele sobre o cavalo Seja sua nova morada A última hora A carga da pressa A coragem de romper na estrada.
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Debaixo e fora de telha
Ser-me-ia praticamente impossível, até mesmo bizarro, pensar na minha actividade enquanto ilustrador sem a presença constante de diários gráficos. Dificilmente saio de casa sem levar um comigo, por mais pequeno que seja. Disponho sempre de vários em constante utilização simultânea. Entre si vão diferindo nos formatos, gramagens e tipologias de papel mas, independentemente da especificidade, todos acabam por subordinar-se a um propósito maior: o da prática regular, seja esta de observação directa ou do âmbito imaginário, registos mais cuidados ou descontraídos, tenham estes algo mais específico em vista ou nem por isso. De um ponto de vista mais pragmático esta mesma prática do diário gráfico é-me útil na medida que me oferece um mecanismo de filtragem eficaz de ideias e conceitos, do que pode ou não prosseguir para situações mais consistentes. No seu conjunto, sempre em expansão, estes cadernos vão marcando uma cronologia pessoal, um “making of” íntimo de toda a minha produção realizada até ao presente momento. É um arquivo processual em permanente construção que documenta e testemunha de forma privilegiada não só o que desenvolvo profissionalmente como também por onde ando ou o que me atrai e motiva. Os meus desenhos em caderno acontecem tanto nas nas saídas de campo e de lazer como no relativo conforto do atelier. Por vezes a natureza do sítio onde o diário gráfico é aberto determina o que vai acontecendo nestes: a produção de desenhos de observação é-me mais propensa no exterior, por outro lado, no atelier é mais recorrente levar o desenho em caderno ao encontro da resolução de problemas relacionados com projectos. Uma catalogação de atitudes e propósitos é sempre tentadora mas aqui torna-se ingrata, até mesmo perigosa, pois considero que o diário gráfico é tanto um território de experimentação, onde não há necessariamente uma carta de intenções ou regras formais, como também é um espaço privilegiado para determinar avanços mais cautelosos. No fim, provavelmente é toda esta liberdade de acção e vastidão de possibilidades que torna um caderno um objecto tão atractivo. QUANDO FOR GRANDE
Quando for grande quero ser polícia para bater nos pais de outros meninos em frente aos outros meninos. O meu pai sempre me disse: cuidado a quem dás bastonadas. Nunca dês bastonadas a um preto senão vão achar que és racista. Se deres bastonadas a um branco estarás apenas a ser polícia. Ainda bem que não somos pretos. Imaginem se fôssemos pretos. Já não podia ser polícia. * O MEU CORPO Este é o meu corpo, mas ainda não é o meu corpo. Este já não é o meu corpo e nunca voltará a ser o meu corpo. Mas este já foi o meu corpo e ainda virá a ser o meu corpo. Este já parece o meu corpo, mas eu não sei se o meu corpo ainda se lembra do meu corpo ou se terá de esculpir outro. * DEUS Deus não me pede nada, mas eu culpo-o de tudo. * LEONARD COHEN MORREU Leonard Cohen morreu. Pelo menos tenho o doce de tomate da minha mãe. há um banco de pedra na cidade
que se envolve numa bolha que faz parar todo o mundo em seu redor onde fito paredes brancas e calçada colorida onde nas muralhas se erguem pinturas de quem não está de bem com os dias onde passam carros mas é como se não passassem porque debaixo da única árvore não há som que lembre o susto de pensar que se está cá há um banco de pedra na cidade de lágrimas que transporta o homem para lá do tempo que transporta o homem para lá do riso que transporta o homem para lá da vontade de partir onde nada corrói nada mói e onde as portas não encaixam nos prédios sessão das nove e meia
Grace Kelly no ecrã, sacudindo os pés descalços, viu a laringe a ceder e se me faltou o ar foi contágio e nada mais depois veio a quarentena longa, torpe, e entretanto fechei o licor à chave ainda não vi Point Reyes afoguei uma calêndula decidi plantar estrelícias aprendi a usar pauzinhos aprendi que os leões-marinhos morrem a caminho de casa Grace, por fim, vejo a terra a secar ao longe no sulco exausto dos dias lá onde só resta, sob o sal do Jordão, um bagel e Mountain View * debaixo do tapete, o Cão ladra a noite toda. é normal; são só ossos pelo solto saliva acre matéria negra talvez tenha raiva ou um canino estéril talvez canse guardar as fendas do soalho ou talvez haja apenas pó como no princípio sem o destapar segui o método científico: para desfiar os maus augúrios fervi chá e bebi pelos dois (as folhas comi-as, pelo sim, pelo não) mas é verão ainda se sente o calor das ameixas e eu que me esqueci de pendurar as maias em janeiro * a água ferve a 100 graus ao nível do mar a 68 no esforço icário dos Himalaias a 10 em Marte; sabem Deus e a NASA o que há em Marte para escaldar o gin ferve a 36 sotto voce 37 se eu tiver febre se for dia de destilar a roupa e vestir o corpo ao contrário |
Histórico
Novembro 2021
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