O psicopresidente está na televisão e os seus olhos são escuros como balas. Espera, são buracos. Não há olhos, não há luz, são buracos escuros e fundos. Espera, há uma popa. Uma popa de pavão louro e solar. Há pastores evangélicos. Cientistas embaraçados. Jornalistas perplexos. O senhor não pode fazer isso. Eu sou o presidente. O presidente sou eu.
Buracos escuros e fundos. Duas auréolas negras. Uma popa loura e aquela boca de bebé chorão, debruçada num beicinho viscoso, o precipício. As palavras saem e escorrem pelo precipício. Um palhaço. Um títere. Os tiques. Histriónico. Psicopresidente, presipsico, psicodente, Pepsodente. Mas afinal de quem estamos a falar? Isso interessa pouco, porque neste momento ela tem o coração acelerado, tão acelerado que lhe sobe pelo peito, galopante, até a engasgar, como se asfixiasse por dentro, como se quisesse saltar-lhe pela boca, um sufoco repentino, uma aflição. Acorda. Acorda, mãe. Dedos pequeninos, doces como almofadas, a abrir-lhe as pálpebras, como quem cria espaço num livro cerrado, colado pelo tempo. O Sol a atravessar a portada da janela, passando entre os pingos da tarde. Ela obedece, estremunhada. Era só uma sesta, breve e necessária, para se recompor do tédio. Sebastião ali especado, olhos gigantes, também ele com cara de sono, mãe já dormiste muito, mãe já dormiste tudo, o que é que vamos fazer. Nada. Podemos pintar. Podemos fazer digitinta. Podemos ver os desenhos animados na televisão. Montar o vigésimo sétimo castelo. Destruir o vigésimo sétimo castelo. Torres e ameias e tudo. Podemos fazer gomas. - Gomas, mãe? Gomas como joias pedras preciosas rubis encarnados, gemas amarelas, transparentes, laranjas, brilhantes, turquesas, escarlates, azuis. E depois comemo-las. Quando era pequenina, pensa, não se chamavam gomas. Eram gelatinas. Cobertas de açúcar cheias de promessas de cáries. O psicopresidente também é assim gelatinoso, só que em mau. Ainda bem que não reparas nessas coisas, Sebastião. Tu só queres gomas derretendo-se entre os dentes e é isso que vamos fazer. Quando era pequenina, não tinha mal não fazer nada. Era bom não ter nada para fazer. Agora já não podia mais com aquilo. Nada. O líquido viscoso está ao lume, e enquanto mexe, para não pegar, pensa no bicho virulento peganhento que fez parar o mundo e porque raio terá sonhado com aquelas duas avantesmas, ainda por cima numa tarde tão bonita como aquela. Um monstro dois-em-um, de olhos encovados e popa radiante, um monstro sem máscara esnobando gripezinhas. Depois, o líquido irá para dentro das formas, e nascerão dinossauros, macacos, zebras e leões. Girafas não, talvez tenham pescoços demasiado compridos, excessiva elegância para se poderem transformar em gomas. Antes, as formas iam para a praia e enchiam-se de areia, e nasciam conchas e peixes e búzios e caranguejos, e fazia bolas de Berlim molhadas, e polvilhava-as de areia seca, e depois comia-as com a mente. - Girafas são zarafas, sabias? A palavra vem do árabe “zarafa”, que significa “encantadora” e “amigável”. - Os árabes inventavam muitas coisas. - Muitas. Números. Gelosias. Astrolábios para navegar. Agora não havia areia, não havia mar. Também não havia bolas de Berlim com o seu creme escandaloso. Reais ou imaginadas. Se eu penso, existe, se existe, eu posso comê-la. Se se debruçasse, meio corpo de fora do parapeito da janela, conseguia ver o Tejo. Agradecia ver o Tejo. Era um risquinho, ao fundo da rua. Sempre era um rio, e corria. Se o vir, existe, se não o vir, existe na mesma. A natureza está-se nas tintas, e é por isso que é o maior refúgio. A natureza é como a vaca que contempla o mundo. Lá de baixo, a vista era melhor. A rua onde moravam era muito íngreme. Descia, descia, até parecer afundar-se no rio. O rio era fundo, mas não metia medo, como os olhos do outro, no sonho. Cada três dias, era preciso sair e comprar comida. As casas de agora não estavam preparadas para grandes abastecimentos. A ideia era substituir, não armazenar. A aceleração era linda. O impulso, glorioso. Era preciso consumir, mas sobretudo consumir rapidamente e sem pensar. A ideia de despensa era subversiva. Baseava-se na antecipação, na previsão, no aprovisionamento, tudo ideias demasiado racionais para tempos selvagens. Para onde tinham ido as despensas? Em casa dos avós, havia uma divisão inteira da casa consagrada ao armazenamento. E um armário na cozinha, do tecto ao chão, onde o avô guardava as iguarias. A porta era azul clara, com uma moldura azul marinho à volta. Tinha uma pequena maçaneta metálica. Café de várias moagens da Casa Pereira, vinho do Porto, chá preto da melhor proveniência, línguas de gato, frascos de fruta cristalizada, tâmaras maduras, whisky de 12 anos, latas de bolachas de manteiga, e ao fundo, vários cilindros e paralelepípedos contendo conservas. Batalhões de enlatados, muitos com datas ultrapassadas, mas que o avô insistiria em comer sem medo de ficar indisposto ou mesmo gravemente intoxicado, pois deitar fora comida era não só um crime, como uma blasfémia. Em meados do século passado, o avô combatia o desperdício alimentar. No início do século passado, uma pandemia arrasava o mundo. No ano de 2020, pulverizavam-se maçanetas. A extinção das despensas não impedia que muitas pessoas tivessem corrido aos supermercados para se abastecer antes do mundo acabar, e assim sumir-se condignamente. O açambarcamento, uma mutação pandémica da compra por impulso, tinha tomado conta da realidade. A fixação em rolos de papel higiénico era particularmente acentuada. A extinção dos bidés era também uma possibilidade a ter em conta. A carne de vaca fora a primeira a desaparecer das arcas frigoríficas. Depois o frango, depois o peru, depois o porco, o coelho, o pato, o borrego. Ir ao supermercado transformara-se numa caçada. Naquele bairro, que antes lhe parecera um gueto sereno e luminoso por estar no coração da cidade, mas ao mesmo tempo isolado da grande confusão, ela já estava confinada antes do confinamento. Supermercado, farmácia, mercearia, jornal, jardim, ginásio, fonte, esplanada, café, tasco e Tejo e tudo, quantos dias podiam passar sem que saísse daquela abençoada e formosa quadrícula? Trabalhava em casa, escrevendo textos como quem frita farturas, virando frangos martelados no teclado, a escola do filho a seis minutos de distância, subir, direita, esquerda, direita, atravessar, direita, as escadinhas deslizando até ao rio, o rio cambiante verde e azul e cinzento denso transparente vaporoso metalizado turvo cristalino e em cima da linha um navio, e correndo ligeiro um veleiro. Iça as velas. Calça as luvas. Máscara cobrindo o rosto como uma odalisca contrariada. Carrega os sacos e agora ela é Ulisses descendo a rua. Sebastião em casa, nariz colado ao vidro da janela que está terminantemente proibido de abrir. A mãe é um pontinho colorido no cimo da rua, depois vai-se aproximando e o coração de Telémaco sossega, passou meia hora e a meia hora é uma eternidade, mete a chave na porta lá em baixo, ouve-lhe os passos, escadas acima, degraus poeirentos, corre para a porta, abre-te sésamo, abraça-lhe as pernas como um tronco, amor, amor, abracinhos não, solta a mãe e soltam-se os sacos, larga os sapatos, troca a roupa, lava as mãos, já cá estou meu lindo e trouxe os teus cereais.
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Cinco poemas de Max Czollek traduzidos para português por Mafalda Sofia Gomes (SpiegelZwEi #2)12/4/2021 SpiegelZwEi é um projeto de Mafalda Sofia Gomes em que se estrelam dois ovos na frigideira, a nova poesia de língua alemã e a respetiva versão portuguesa. Juntos resultam numa experiência gastronómica intensa. Guten Appetit! Max Czollek, nascido em Berlim em 1987. Licencia-se em Ciência Política na mesma cidade e conclui, em 2016, um doutoramento sobre o surgimento e a disseminação do antissemitismo no Cristianismo primitivo. Membro do Lyrikkollektiv G13. Autor dos livros de poemas Druckkammern (Câmaras isobáricas) (2012), Grenzwerte (Limiares) (2019) e Jubeljahre (Jubileus) (2015), publicados pela Verlaghaus Berlin. Dinamizador, desde 2013, do projeto Babelsprech (Fala de Babel), orientado para a divulgação de jovens poetas de língua alemã. Coeditor da revista Jalta – Positionen zur jüdischen Gegenwart (Ialta – Posições sobre a contemporaneidade judaica) e da antologia Lyrik von Jetzt 3 (Poemas de Agora 3). (Wallstein 2015). Em 2018 dá à estampa o livro de ensaios Desintegriert euch! (Desintegrem-se!)(Carl Hanser Verlag).Recebeu o prémio de Literatura de Bona (2017), a bolsa para a residência artística da Kulturakademie Tarabya em Istambul (2018) e, finalmente, o prémio Václav Burian Preis de Olomouc na República Checa. Em 2020, iniciou e foi curador do projeto Tage der Jüdisch-Muslimischen Leitkultur (Congresso descentralizado que propõe uma contranarrativa artística da cultura alemã). Todos os poemas traduzidos integram Jubeljahre. eu dirijo-me àqueles que partiram como pais e voltaram como filhos que estavam no lidl e acreditaram que era hora de tomar os gofres que na alvorada entraram por uma porta e de seguida pediram desculpa que de forma nenhuma se deixam apanhar vivos, cujo corpo de sangue traz coletes à prova de bala // ich wende mich an diejenigen die als väter auszogen und zurückkehrten als söhne die im lidl standen und glaubten es sei zeit zu den waffeln zu greifen die in der morgendämmerung eine tür eintraten und sich anschließend entschuldigten die sich auf keinen fall lebendig fangen lassen, deren blutkörper kugelsichere westen tragen * eu dirijo-me àqueles que sempre quiseram fumar lucky strikes numa estação de serviço que deixam crescer a barba para esconder os dentes que já não têm medo dos médicos que inventam uma arma secreta e que se esquecem dos planos de construção debaixo do assento a caminho do ponto de encontro eu dirijo-me àqueles que têm um cinto para a barriga e uma mala para lugares movimentados estações centrais, grande liberdade, campo de estelas // ich wende mich an diejenigen die schon immer mal lucky strikes an einer tankstelle rauchen wollten die sich bärte wachsen lassen um dahinter ihre zähne zu verstecken die keine angst mehr haben vor den ärzten die eine geheimwaffe erfinden und die baupläne auf dem weg zum treffpunkt unter ihrer sitzbank vergessen wende mich an diejenigen die gürtel besitzen für ihren bauch und einen koffer für stark frequentierte orte hauptbahnhöfe, große freiheit, stelenfeld * (DESCOBERTA DA VELOCIDADE) no início, Josef, ainda é fácil: quanto mais depressa correres, mais depressa muda a paisagem: montanhas rodeadas de verde tropa, trilhos pinheiros como grades não olhes para a nuvem que se levanta como arde o vale o olho da terra está aberto segue-te persistentemente não se permite pestanejar tenta fugir do alvo em cruz esquiva-te durante o dia dá descanso à noite esconde a tua tocha, recapitula a rota avanças mais devagar do que roda a esfera em progresso contra o teu trajeto Josef, iosif, joseph quem foste em quem te tornaste? // (ENTDECKUNG DER GESCHWINDIGKEIT) zu beginn, josef, ist es noch einfach: je schneller du läufst, desto schneller wechselt die landschaft: berge gehüllt in tarnfarbe, knüppelpfade tannen wie hamburger gitter schau nicht auf den nebel der steigt als brenne das tal das auge der erde ist aufgesperrt folgt dir beständig erlaubt sich nicht, zu zwinkern versuche, dem fadenkreuz zu entwischen schlage haken bei tag gib ruhe zur nacht verberge deine fackel, rekapituliere die route kommst langsamer voran als drehte sich die kugel zunehmend gegen deinen lauf josef, josif, joseph wer bist du gewesen wer bist du geworden? * os anões levantam-se e sacodem-se, expõem à luz as imagens da minha mala. a mim ensinaram- -me a usar benzina como sabonete, regras pela regra, nenhum isqueiro à lareira. esta compulsão de fazer de cada viagem um exílio. incêndios nos quintais, desejo-o debaixo dos pinheiros. ontem as florestas ainda eram suficientemente sábias para se esconderem nos museus. hoje a minha nova pátria chama-se vagão se me querem acordar, faço de conta que durmo. faço de conta que durmo, sonho: houve pedras, pesos, que tu expulsaste dos teus olhos. preciso seria autoridade suficiente para dizer “amor” // die zwerge stehen auf und schütteln sich, belichten die bilder aus meinem koffer. mir wurde beige- bracht, benzin wie seife zu gebrauchen, regeln für die regel, kein feuerzeug an feuerstellen. dieser zwang, aus jeder reise ein exil zu machen. brennt es in den kleingärten, wünsche ich mich unter tannen. gestern waren die wälder noch klug genug, sich im museum zu verstecken. heute heißt meine neue heimat mitropa will man mich wecken, stelle ich mich schlafend. stelle ich mich schlafend, träume ich: es gab steine, hantelschwer, die du mir aus den augen räumst. was es bräuchte, wäre ausreichend autorität, „liebe“ zu sagen * o conserto do mundo, talvez quando o vapor da respiração das cabras, quando a floresta, o âmbar, o frio, talvez quando os copos de medir se encherem, talvez quando a terra for tomada, talvez quando nós sozinhos e sozinhos talvez depois quando a palavra casa, talvez quando os amigos morrerem, talvez depois das festas talvez quando todas as nossas perdas, talvez os vasos e a luz dispersa, talvez quando as cercas da escritura, talvez quando não restar nenhuma folha de papel nas articulações dos muros, talvez quando os mortos dançarem talvez de alegria estrondosa talvez quando a luz ao fundo das salas de parto, talvez um conserto do mundo // die reparatur der welt, vielleicht wenn der dampfatem der ziegen, wenn der wald, der bernstein, die eiszeit, vielleicht wenn der becher gefüllt, vielleicht wenn das land erobert, wenn wir allein und allein vielleicht wenn dann das wort zuhause, vielleicht wenn die freunde sterben, vielleicht nach den festen vielleicht wenn all unsere verluste, vielleicht die gefäße und das weit verstreute licht, vielleicht wenn die zäune von der schrift, vielleicht wenn keine zettel in den fugen der mauern, vielleicht wenn die toten vielleicht tanzen vor lauter glück vielleicht das leuchten am ende der kreisssäle, vielleicht eine reparatur der welt Fotografia de Lydia Goolia
Ilustração de Varvara Polyakova Estamos velhos, criança
brincávamos a alguma coisa. dizem as fotos que sujávamos as fraldas e as mãos de lama. levávamos depois as mãos à boca e sorvíamos a terra mole. no segundo seguinte acordámos engolidos por um relvado pisado e molhado, mais castanho que verde. não há máquinas nem fraldas nesta fotografia que ficou por tirar. estamos velhos, criança. hoje é a terra que nos come a nós. * A consciência do apocalipse um vizinho lia o céu há dias partia da varanda em viagem anárquica à porta do mundo. no andar de baixo, uma mulher embalava o filho enquanto me oferecia diferenças por resolver. invejava-lhes a consciência do apocalipse ou a inconsciência de tudo. ao longe, uma sirene. * O primeiro pêlo branco faltava-lhe o relógio no pulso, sobrava-lhe a certeza de um atraso inventado a amparar-lhe a vergonha. sonhava-se observado, a nuca febril a expulsar a convicção de ser olhado por personagens que inventou, antepassados que nunca viveram. sentia-se sépia, flor adiada por parasitas que lhe comeram a cor. suava o suor dos falsos alarmes quase tão assustado como ficou com o primeiro pêlo branco que encontrou no peito. * Lá onde se escondem os pássaros os jacarandás acordaram hoje roxos as folhas verdes de outrora uma miragem. um relógio arrítmico pontua o silêncio. os pássaros continuam a cantar ninguém sabe onde se escondem. só confio no pó para me explicar o movimento ácido do tempo. pela janela lançam-me um fio de luz uma corda incentivo último à deserção. * O luto dos teus olhos o sol caía no luto dos teus olhos. o silêncio do choro contido interrompido por tratores. a faca a pressionar o estômago. crianças corriam à frente da capela, não havia forças para as mandar parar. um ecrã passava fotos dela lembrava-nos de não olhar para o caixão. os da primeira fila carregavam as múltiplas variações do horror nos rostos. o silêncio de uma banheira a meia luz. um dia bom na aldeia, portas e janelas abertas. não se via tanta gente junta desde a última. digo meus lábios navegando nos teus seios
como que segurando o mundo trémulo áspero as veias da cidade incendiadas sufocados pelo seu negócio seiva de engrenagens sorvidas pelo seu próprio desejo o grito tomando o lugar da boca projectando-se no ar belo perdido letal de pátria apenas conhecemos na infância um lago cavernoso de animais largando longos bafos quentes de vício a praça dos poveiros que tal como grande parte do país literário foi colonizada por turistas de gin na mão fomos-nos perdendo menos absurdos menos belos demorando a morrer e ainda que me tenha segurado em fios de elétricos que hoje se prontificam a ser removidos ainda que tenha descoberto na fula carnavais ditosos cujas ressacas não guardaram como que uma Revolução que se pudesse afirmar como um gesto poético autêntico digo concretizado ou pleno como podres plenos dentes os teus são tenho ainda alguma inesperada relutância ao ver-me musgo nos pilares de mármore siderais e geométricos desta grande civilização - ó vindouros ciumentos como anjos - que inaugurou a época do saque * I Falar-te da raiva do choro esquecido nas sombras das fábricas de entre a dolorosa luz das lâmpadas onde o outro descobriu a histeria ter descoberto a fome a miséria a escravidão ou a tua cara devorada pelas seis da manhã bruta fúnebre esquálida viciada tesão das tuas costas plenas como magma arrancar-lhe as escamas uma a uma com toda a dor e todo o mal o espectro de uma civilização lavrada pelo medo II a criança leva-te pela escada esta é a morte dos seus antepassados seus ossos são o que resta dos seus gritos afiados brancos inexpiáveis relíquias tabacário solaz promessa de meia-praia a impaciente aurora dos punhais III nas suas goelas ouvir as cordas das pontes a içar o turbilhão doido do sal no vento preparado para descobrir o amor IV- o Forte tinha razão entre carrasco e condenado não há diálogo diálogo é entre camaradas amantes gargalos alimentados pelo mesmo grito combinações análogas de cocktail molotof preparadas para explodir quando como que acreditada a primeira palavra for dita. * I uma praça como um delírio aguardado subitamente lapidada da sua pele como que florescendo para o mundo trazendo nos doces leitos das suas carruagens os sonhos roubados dos terrores nocturnos povo exaurido em suor frio digo P-R-A-Ç-A mas deveria dizer mercado lota honrável da pátria o nervo do cavalo excitando a plateia da gordura régia. II Invertebrado como a luz solar tu iluminaste este lugar e se teus dentes são de vidro lança TU mais uma vez a tua paixão sob os astros cemitérios sangrando sobre as testas dos filhos dando-lhes nome fardo linhagem patriarcal arsenal de raiva honrando as lápides com narrativas do veneno traições em barda barricadas de sonho quem fez cesariana na tua boca ensinou-te que rasgando a carne a canção é autêntica como um tornado enojado pela abundância ou uma aurora escrevendo o seu nome nas nuvens a fome legitima-te a comê-los a tua fome justifica que os comas III A poesia não está nas palavras as palavras são a crosta da poesia como uma ferida, cicatriz pela estranha recordação da guerra que provoca as palavras recordam-nos da poesia porque ainda não é tempo de parar de matar. * Não conhecerás a noite enquanto não domares o fogo não como quem seduz a morte no ofício temporâneo do cutileiro nem tão pouco como quem a deu a conhecer ao povo com suspeita clareza confiança no futuro mas como quem nunca estranhou a presença do sal na madrugada do rosto sabendo onde a corrente leva os seu fantasmas para lhes dar carne encenar a sua trama inexpiável e as crianças públicas expectantes a mulher frígida de sardas estrelares sabem que o reflexo é a última aparição do corpo e com um dedo estendido procuram o seu complemento mergulhá-lo nas profundezas do seu retrato fluvial provar a matéria fundamental de tudo o que habita Não conhecerás o fogo arder enquanto não vires a tua casa a arder arder não como quem chora pelo fim do império como um farol abandonado depois da grande seca nem tão pouco como quem aguarda o regresso da barbárie mas como que encontrou nos ovos das baratas ecos de uma civilização demasiado c-o-n-t-e-m-p-o-r-â-n-e-a até porque como assombrou Pirandello: a civilização é a barbárie e os corpos incinerados pelo esquecimento os portos que foram dourados como templos a aprender a devoção pelas lágrimas são nem já a pompa triunfante da guerra a exterminação dos gentios Não conhecerás o fogo * aguardando numa frígida paragem de autocarro a vinda da paixão e Hopper desenhando com malícia a magreza do espaço a renúncia deste à transcendência as costelas com saliências de fome a sua face convalescendo no deserto há aqui como que uma razão em falta um motor esbaforido contra os tambores da carne ameaçando colar-se nos pulmões agrilhoá-los de sentido ter no cabo da navalha um povo a arder e se a besta estouvada chorasse enfim as suas lágrimas na minha testa não teria mais consolo a morte. |
Histórico
Novembro 2021
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