Gajas impopulares
Todos têm a sua vez, agora é a minha. Ou pelo menos era o que nos ensinavam no jardim-escola. Não é realmente verdade. Alguns têm mais vezes que outros, e eu nunca tive uma, nem uma. Eu mal sei dizer eu, ou meu, tenho sido ela, a ela, aquela, há tanto tempo. Nem sequer me foi dado um nome; fui sempre a irmã feia , ponham ênfase no feia. Aquela para quem as outras mães olhavam e depois desviavam o olhar abanando as cabeças suavemente. As suas vozes baixavam ou calavam-se quando eu entrava no quarto, com os meus vestidos bonitos, a minha cara inerte e carrancuda. Elas tentavam pensar em algo para dizer que redimisse a situação - bem, ela é forte - mas sabiam que era inútil. E eu também. Acham que eu não odiava a pena delas, a sua bondade forçada? E saber que, não importava o que eu fizesse, o quão virtuosa eu era, ou trabalhadora, eu nunca seria bonita. Não como ela, aquela a quem bastava estar sentada para ser adorada. E ainda se admiram porque eu espetei alfinetes nos olhos azuis das minhas bonecas e lhes puxei o cabelo até elas ficarem carecas? A vida não é justa, porque é que eu deveria ser? Quanto ao príncipe, acham que eu não o amei? Amei-o mais do que ela; amei-o mais que tudo. O suficiente para cortar o meu pé, o suficiente para matar. Claro que me disfarcei com muitos véus, para tomar o lugar dela no altar. Claro que a empurrei da janela para fora e puxei os lençóis para cima da cara e fingi ser ela. Quem não o faria, se estivesse no meu lugar? Mas todo o meu amor chegou sempre a um mau fim. Sapatos a escaldar, barris cheios de pregos. É assim que se sente, amor não correspondido. Ela também teve um filho. A mim nunca me foi permitido. Tudo o que vocês quiseram, eu quis também. Good Bones * Mais nenhuma foto Mais nenhuma foto, de certeza que há suficientes. Mais nenhuma sombra de mim atirada pela luz para pedaços de papel, para quadrados de plástico. Mais nenhuns dos meus olhos, bocas, narizes, humores, maus ângulos. Mais nenhuns bocejos, dentes, rugas. Eu sofro da minha própria multiplicidade. Duas ou três imagens teriam sido suficientes ou quatro ou cinco. Isso teria permitido uma ideia firme. Isto é ela. Assim, sou aguada, enrugo, de momento em momento dissolvo-me nos meus outros eus. Vira a página: tu, a olhar, estás novamente confuso. Conheces-me bem demais para me conhecer. Ou, não bem demais: a mais. The Tent * Mais depressa Andar não era suficientemente rápido, por isso corremos, correr não era suficientemente rápido, por isso galopámos. Galopar não era suficientemente rápido, por isso velejámos, velejar não era suficientemente rápido por isso rolámos felizes por longos carris de metal. Os longos carris de metal não eram suficientemente rápidos, por isso conduzimos. Conduzir não era suficientemente rápido, por isso voámos. Voar não é suficientemente rápido, não para nós. Queremos lá chegar depressa. Chegar onde? A qualquer sitio onde não estejamos. Costumam dizer que uma alma humana só pode ir tão rápido quanto um homem pode andar. Nesse caso, onde estão as almas todas? Deixadas para trás. Vagueiam aqui e ali, lentamente, luzes sombrias, tremeluzentes, de noite nos pântanos, à nossa procura, mas não são suficientemente rápidas, não para nós, estamos muito à frente delas, nunca nos apanharão. É por isso que nós podemos ir tão depressa? As nossas almas não nos pesam. The Tent * O corpo feminino Ele disse, não quero uma dessas coisas cá em casa. Dá uma falsa noção de beleza a uma menina, já para não falar de anatomia. Se uma mulher fosse feita assim cairia de borco. Ela disse, se não a deixarmos ter uma como todas as meninas, ela vai-se sentir isolada. Vai-se tornar num problema. Vai ansiar por uma e vai querer ser uma. A repressão gera sublimação, sabes bem isso. Ele disse, não são só as mamas de plástico pontiagudas, são as roupas. As roupas e aquele estúpido boneco masculino, como é que ele se chama, aquele com a roupa interior colada. Ela disse, é melhor despachar isto enquanto ela é pequena. Ele disse, está bem, mas não me deixes ver. Veio a sibilar pelas escadas abaixo, atirada como uma seta. Completamente nua. O cabelo tinha sido cortado, a cabeça virada de trás para a frente, faltavam-lhe alguns dedos dos pés, e estava toda tatuada com arabescos de tinta roxa. Atingiu o vaso das azáleas, tremeu por um momento, como um anjo remendado e caiu. Ele disse, acho que estamos safos, o perigo já passou. Good Bones
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resista. os papéis estão cheios,
não há quadros na sala, o quarto é vazio e cansaço, mas existem os maus poemas para serem escritos, basta ouvi-los, escutá-los. não consegue escrever o poema? não consegue deixar de escrevê-lo? ora, pense nos anos que virão, mas não pense no amanhã, tão próximo e ardente. onde fechar os olhos, cessar a alma? foque, com insitência, na rua, nos passos, no tempo onde come de mãos sujas a vida. desista da torre, deponha o sonho. aceite, está mais do que provado, a vida é impossível ao meio-dia. por que a fúria e gana de quem quer vencer a partida a qualquer custo? pense: é isto ou o silêncio, e você, meu caro, sabe como o silêncio infiltra-se, rói e persiste, ruidoso. não desista das ninharias, do pó sobre as flores de plástico, do ouro de plástico e do que nele é possível de lúdico e frio, pois tudo é isso: lúdico e frio. que esperar mais? as palavras estão gastas, gasto está o mundo por onde anda debuxando sonhos, tentando vencer a tristeza por pontos. mas você sabe, disseram que diríamos e nada seria dito, eles acertaram Renan. e enquanto o amor é só um verbete, os papéis estão cheios. é preciso, pois, escrever por cima, rasurar, decalcar. o belo, meu caro, estava nos rios, nas árvores centenárias, na morte, quando a morte era só a última página. resista. e nunca se pergunte, jamais, o que poderia ser pior que isso. * é bom morrer às vezes, poder alagar e demorar o tempo e o peso das coisas. o copo e seu mar, suas vias menos ou mais secas. ou o caderno entre livros, tão extenso que as palavras uma por uma avançam em silêncio e descaso contra o tumulto que foi a vida. porém, todo sonho, como toda vida, como toda morte, tem um fim, um charco sem lírio, sem mal ou bom cheiro, apenas um terreno cru, inútil até para maldizer esta saudade impressa nas mãos úmidas. Esta coluna pretende estabelecer um diálogo entre a Poesia e as Artes Visuais, recorrendo a técnicas de colagem para a interpretação visual de poemas (ou excertos de poemas) de autores lusófonos. Colagem 1:
Couto, Mia; Raiz de Orvalho e Outros Poemas, Lisboa, Editorial Caminho, 2009, p. 13. Colagem 2: Torga, Miguel; Poesia Completa I, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2002, p. 390. Colagem 3: Faria, Daniel; Poesia,Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, p. 62. Iogurte Diário
Pego na cilíndrica humidade Devagar como se faz um filho Sinto-lhe as feições escorregadias Destinadas a se amachucarem involuntariamente Sou um alpinista calculista que sobe só a montanha Para lhe tirar a neve do cume Faço cuidado para não tocar na lava fria Que ao contacto me tornará um criminoso desrespeitado Pouso paulatinamente o teto sem vida Que sem arrependimento separei do abrigo Sou um estripador faminto Agora vejo a cova nua e desprotegida Sou uma besta sem escrúpulos que me definam Cai a colher desamparada no leito consistente Perdendo-se vagarosamente de si mesma. Depois de engolida e mergulhada num sorvedouro próprio Agarra no que pode (e no que deve) e traz consigo malandros pedaços Soltos fósseis de validade atingível. Coloco a boca a jeito do soco iminente Sem nunca deixar a mão trémula Sem dar por isso a minha língua é beijada ao desbarato Por aquilo que sinto chamar de manhã Fresca, leve e impactante - assim O guião diz-me que irei sofrer de juras de sabor Nos próximos dois ciclos salivares - assim espero A arma do crime pertence à vítima Pego de novo no cume que há minutos desmembrei Sem remorsos E faço o curativo possível ao seu todo Encosto-me infeliz Afinal foi só mais um que não soube dar luta * Se todas as manhãs fossem minhas Se todas as manhãs fossem minhas Ai se todas as manhãs fossem minhas Nunca lhes mudaria o nome Seriam manhãs até amanhecer de novo Seriam assim carregadas de eternidade O que leva uma manhã a pensar que tem o direito de acabar Estão tão enganadas estas manhãs de hoje em dia Já não respeitam os conhecedores de auroras não respeitam Se todas as manhãs fossem minhas O restante dia e a posterior noite não teriam protagonismo A manhã não tem elenco A manhã constrói-se de si própria Ninguém a representa tão bem quanto ela Que ninguém sequer pense Num ato desprovido de inteligência ou emoção Em acabar com as manhãs Rasgaria o contrato da minha vida Se as manhãs não mais nascessem Dêem-me uma manhã no natal saberei guardá-la Espero que as manhãs sejam sempre manhãs Se alguma vez não o forem Podem dar o nome de injustos a todos os dias O corpo é um território
A palavra portuguesa bairro tem origem controversa alguns afirmam derivar de barra do latim, que significa divisão outros afirmam derivar de bárri do árabe, que significa exterior lugares cercados de terra pensam em divisões e exteriores o que vai para fora da terra o que há para o lado de fora como dividir espaços e se soltar uma península agarrada a um continente com uma palavra que torna todos os seus pequenos pedaços em exteriores e divisões soltos e contraditórios A aproximação entre os termos barra e bárri deixa tudo ainda mais terreno e confuso se quando dividimos somos o exterior ou a periferia de nós mesmos dentro e fora de uma terra que nos divide cada vez mais em bairros isso tudo em português a língua que minha cabeça divide e exterioriza aqui mesmo na sua frente Na língua tagalog o termo bairro não existe a língua tagalog é falada nas Filipinas e não usa nada parecido com bairro para dissolver seu território já dissolvido nas Filipinas o termo usado para denominar uma divisão administrativa é Balangay que significa um tipo de barco lugares cercados de água pensam em conexões e interiores o que vai para dentro da terra o que há para o lado de dentro como construir pontes e se prender um arquipélago solto como um continente com uma palavra que torna todos os seus pequenos fragmentos em interiores e conexões visitados por barcos e migrações O termo balangay pode ser abreviado brgy ou bgy pode ser usado como um pequeno pedaço de terra que se sente solto e precisa de um barco para se conectar com outra parte pendente no mar um único termo que significa barco e seu interior carrega a unidade fragmentada de um arquipélago que dividido se torna um único Um corpo é composto por 60% de água poderia ser ele um arquipélago uma ilha, mas também um continente com suas partes divididas em bairros ou então em balangays mais da metade água vencendo por pouco a terra Uma língua dissipada em três continentes Outra em 7107 ilhas entre bairros ou balangays Como um corpo em português poderia nomear seus braços que não bairros para sempre invadidos? Como um corpo em tagalog poderia nomear seu corpo que não bangalays para sempre atravessados? * Um rojão atado à memória Minha mãe me contou que um enxame de abelhas caiu de dentro do tronco de uma árvore podre na infância, distante, dois eram os meus medos dois barulhos insuportáveis a explosão da usina angra I e o enxame de abelhas africanas eram parecidos de alguma maneira não sabia ao certo a grande diferença entre morrer como o meu primeiro amor ou morrer como uma criança japonesa Na minha cabeça a onda de radiação chegaria junto às abelhas africanas aos poucos derretendo a pele que sorria imaginando ser um barulho qualquer a urgência de escapar de um enxame de abelhas é de fato maior quando ao redor as árvores apodrecem mais do que as usinas nucleares Imaginava a radiação chegando mais rápido e não em ondas junto aos movimentos ritmados das abelhas em enxame imaginava bastar esconder esperar passar infinitos minutos relembrando as batidas graves do som do rojão invadindo a pausa para o café Os ouvidos imaginavam o ruído da usina caindo o estalar do tronco podre tudo aquilo se parecia muito com tudo explodindo pelos ares e eu derretendo lentamente em uma memória esquecida As abelhas africanas previam em pavor o desabar da usina como um tronco oco E a cada ruído da usina angra I explodindo eu ansiava pelas abelhas que viriam antes matar as galinhas os gatos e os passarinhos e me salvar Hoje sei diferenciar o barulho de um rojão e acredito nas pesquisas que dizem ser a energia atômica uma das mais seguras do mundo e apesar de fukushima na serra um tronco oco e um enxame de abelhas seguem sendo mais urgentes do que a radiação da usina angra I |
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Novembro 2021
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