1.
você não sabe, mas eu tenho 36 dentes e eles doem no frio. e, por não combinar com essa ruga de choro no centro da testa e o meu verso seco apaziguado a vinho tinto, meu sorriso enorme me parece proibido. 2. saudade, aquela palavra que os lusófonos, pretensiosamente, disseminam lhes ser exclusiva, como se necessário fosse existir palavra para sentir, é o que me bate de cinco em cinco segundos, porque meus avós vieram de portugal e estão mortos. 3. 34 anos e dez graus de hipermetropia me fazem nunca esquecer a primeira vez que eu errei. e porque a culpa até hoje crava meus olhos no chão, lembro também os erros que se seguiram. esqueço com frequência como se joga. de sorrir ao pedir o pão para que venha quente e olhar nos olhos o doutor para que não me mate. esqueço de esconder a palidez das unhas sob o vermelho e o negrume das pálpebras sob noites bem dormidas. mas nunca esqueci que aos três anos eu falhei no meio da frase e venho gaguejando desde então.
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{ONDE ESTÁ A SAÍDA?} — Susana Thénon (1935-1991) — onde está a saída? — desculpe? — estou-lhe a perguntar onde está a saída — não não há saída — mas como assim se eu entrei? — claro eu lembro-me de si e até a estou a ver mas saída saída não há está a ver? — mas não pode ser vou sair por onde entrei — não já é muito tarde a partir das dez a entrada é proibida e para além disso, o que quer? que sofra uma lavagem de cabeça para deixar sair uma pessoa pela entrada? — ouça tem de haver um modo de chegar à rua — já perguntou no balcão de informações? — sim mas mandaram-me falar com você — então pronto se eu lhe estou a dizer que não há saída — onde há um telefone? — para falar com quem? — com a polícia — mas isto é a polícia — mas está maluco? isto aqui é uma sala de concertos — isso até certa hora depois é a polícia — e o que me vai acontecer? — depende do comissário de banco se apanhar o Loiácono se calhar corre-lhe bem e em poucos dias está fora — mas isto é uma loucura onde estão as outras pessoas? — secção de confinados primeiro subsolo — porque fazem isto? — ó minha senhora não me diga que nunca foi a um concerto {¿DÓNDE ESTÁ LA SALIDA} -¿dónde está la salida? -¿perdón? -le preguntaba dónde está la salida -no no hay salida -¿pero cómo si yo entré? -claro yo la recuerdo además la estoy viendo pero salida salida no hay ¿vió? -pero no puede ser voy a salir por donde entré -no ya es muy tarde desde la diez hay entrada prohibida además ¿qué quiere? ¿que me den un lavado de cabeza dejando salir a una persona por la entrada? -escúcheme tiene que haber un modo de llegar a la calle -¿ya preguntó en informes? -sí pero me mandaron a usted -y bueno y yo le digo que no hay salida -¿dónde hay un teléfono? -¿para llamar a quién? -a la policía -esto es la policía -¿pero está loco? si es una sala de conciertos -eso hasta cierta hora después es la policía -¿y qué me va a pasar? -depende del comisario de turno si le toca Loiácono por ahí la saca barata y en menos de unos días está afuera -pero esto es una locura ¿dónde está la otra gente? -sector de confinados primer subsuelo -¿por qué hacen esto? -vamos tía no me diga que nunca fue a un concierto FALTA DE CENÁRIO — Juana Bignozzi (1937-2015) Com o gesto do anjo funerário em cemitério aristocrático estendo a mão no ar na lucidez no desamparo esta mão que quisesse pertencer à pietà para cobrir tantos corpos que se devem perder sou só uma mulher que cria signos na sua casa para que os que ama saibam da sua presença ponho flores levanto o candeeiro até à mesa organizo cartas que o tempo regelou de valor renovo a água de um vaso para que caiam nela os maléficos e isto não é um retrato de miséria nem de solidão senão uma descrição um pouco ácida desta vida que perdeu a distância velada que tinham os seus poemas por vezes mais desprotegida que os passarinhos nos cabos da luz contra o inverno e muito menos invencível que os homens que levantam uma casa diante da minha janela digo eu com a pouca graça que ainda guardo não tenho futuro mas não nos enganemos é uma forma de exercer a sedução Falta de Escenario Con el gesto del ángel funerario en cementerio aristocrático extiendo la mano en el aire en la lucidez en el desamparo esta mano que quisiera ser la de la pietà para cubrir tantos cuerpos que deben perderse y sólo soy una mujer que crea signos en su casa para que los que ama sepan de su presencia pongo flores levanto la lámpara hasta la mesa ordeno cartas que el tiempo ha enfriado de valor renuevo el agua de un vaso para que caigan en ella los maléficos y esto no es un cuadro de miseria ni de soledad sino una descripción un poco ácida de esta vida que perdió la distancia velada que tenían sus poemas a veces más desvalida que los pajaritos en los cables de la luz contra el invierno y mucho menos invencible que los hombres que levantan una casa frente a mi ventana yo digo con la poca gracia que aún me queda no tengo futuro pero no nos engañemos es una forma de ejercer la seducción (ACCIDENTIEN) — María Negroni (1951) Buenos Aires não é a cidade dos amantes ao viajar as flechas distraem-se o outono chega a um lugar equivocado ou não chega os barcos como pequenos cortejos entre palavra e palavra bebem-se o vinho o ódio a triste rosa sexual é difícil alcançar o enigma que se é naturalmente a confusão de estar num corpo nunca emigra quando muito Buenos Aires morre como uma cidade inclinada têm medo os barcos de não poder sair de não querer sair da jaula obscena da linguagem na verdade nada ainda começou nada poderia começar quando procuramos o absoluto e só encontramos flechas distraídas é assim não tão breve a prisão não tão breve o cadáver da rosa sexual para sair é preciso entrar não pela esquerda mas pela esquerda os barcos mentem quando escrevem mentem quando não escrevem as decisões tomam um cariz um pouco trágico oh Sócrates faz música um motim no lar do medo não resolve o enigma do medo do lar quando muito essas flechas que chegam e jamais existiram as palavras morrem como devem luz fechada na rua cidade que não hei-de escrever (Accidentien) Buenos Aires no es la ciudad de los amantes al viajar las flechas se distraen el otoño llega a un lugar equivocado o no llega los barcos como pequeños cortejos entre palabra y palabra se beben el viento el odio la triste rosa sexual es difícil alcanzar el enigma que se es naturalmente la confusión de estar en un cuerpo nunca emigra a lo sumo buenos aires muere como una ciudad inclinada tienen miedo los barcos a no poder salir a no querer salir de la jaula obscena del lenguaje en realidad nada ha empezado todavía nada podría empezar cuando buscamos lo absoluto y no encontramos sino flechas distraídas es así no tan breve la cárcel no tan breve el cadáver de la rosa sexual para salir hay que entrar no por la izquierda sino por la izquierda los barcos mienten cuando escriben mienten cuando no escriben las decisiones toman un cariz un poco trágico oh Sócrates haz música un motín en el hogar del miedo no resuelve el enigma del miedo del hogar a lo sumo como esas flechas que llegan y nunca han existido las palabras mueren como deben luz encerrada afuera ciudad que no he de escribir {¿Dónde está la salida?}, do livro La morada imposible (Edição Corregidor, 2005)
Falta de escenario, do livro La ley tu Ley (Edição Adriana Hidalgo, 2002) (Accidentien), do livro Arte y Fuga (Edição Pre-textos, 2010) Luz
Uma vela tremulando não me aquece, só me atrai sigo pensando que controlo a flama A vela cai sobre meus desejos alcoolizados A luz se expande e grita brilhante e devoradora A luz cega e ecoa eterna e imaculada A luz maltrata fria e silenciosa. Você é luz e eu ausência. * Rito O plenilúnio sobre a tua pele arrefece teus lábios tumefactos A lua em tua derme arde e dardeja e teus lábios de cereja umectados cantarolam perolados pela noite ocultos e pelo meu toque contemplados Te tocar é mais céu que o paraíso. * Sudário O alveário em minha mente rege a encruzilhada Sua voz antes melíflua agora soa vazia estreitando com tristuras a senda que a mim se abre Cubro o que restou descubro-me enfim. Paliativo
por vezes firmo-te sobre a pele e és o simples consolo de um copo de água acautelado na mesa de cabeceira enquanto os cães do desejo me velam o sono aos pés da cama por vezes sonho contigo e és um pesadelo de suor frio entornado no escuro dos lençóis onde somos a grés da memória e mudamos de história como crisálidas por vezes ponho-te debaixo da língua e és um comprimido de nitroglicerina que me acode o coração gasto lembrando que a consciência é o carrasco do corpo e a sua única esperança como a tosse aclara a voz ou a febre ampara o corpo – é assim que preservas o meu espírito sob a forma da loucura: um contrapeso passageiro que tanto pode ser a doença como a cura * Amor fácil Sei que é fácil amar pela beleza e morrer de amor por ti (que sempre me sobrevives) – difícil é morrer pelos miseráveis e corruptos, como eu, por este instinto insolúvel de forçar a beleza em toda a parte, dedilhando adjetivos no conforto melancólico da contemplação até que as palavras iluminem o rosto e se aprenda a amar apenas em segunda mão. É ainda mais fácil amar quem me olha de volta e vê refletida a solução inevitável para a sua beleza. No fundo, é fácil amar-te com este ego empedernido de amor e sal, sequóico, colossal, de orgulho ferido por uma benfeitora que abraço com lágrimas estatuárias – e há, nos meus braços, ironias e cansaços – tomando-a, não como escultora, mas arquiteta, porque a forma do meu espírito segue agora uma função. Amo como o pavão enleva a cauda para oferecer mais olhos à beleza, mas um dia fundarei amores difíceis neste vício de morrer pela decifração, nesta mania de alinhar o azimute no reverso do desejo e continuar mudo. * Altar alheio O amor é um efeito de sombras, é esse o mistério. Se não lhe testemunharmos o centro, a ponta por onde se mede o peso de um verbo, o amor é um defeito que assombra. Por isso há que trazer algum lume no bolso, treinar o polegar e aceitar o troco, aguçando as línguas de fogo perante os grilhões do que temos por instinto. É assim que prefiro aprender a incubar a eternidade no estertor de um fósforo, do que arder em altar alheio e dormir todos os dias na mesma cama: prefiro ter orgulho apenas no contorno que se alarga ao brilhar em redor de um corpo, deixando o amor para o escuro que fica no côncavo das palavras que temos por espírito. * O sonho de uma língua comum (de Sob a forma do silêncio, 2019) Não contes nada do teu passado, a nada te ofereças, mas sonha no outro uma língua comum. Não tragas ninguém contigo, a ninguém te peças, mas explora no outro um novo limite do mundo sob a forma do silêncio. Eu amo como quem conhece um novo idioma: aprendo a nomear as coisas que esqueço, a grafia correta do vazio, o mapa dos nossos fracassos, um verbo para o meu ato de amar: a longa aprendizagem de uma perda, o sabor do que nunca será tanto quanto o montante contido nas palavras. na dúvida não me peça nada
o sol entra na vegetação só um pinheiro acima e logo toda a vegetação acima dele talvez ainda brilhe um pouco entre as folhas menos robustas e lá vamos nós de novo dizer o incorrigível me amar não é sua (melhor) resposta love me is not your (right) answer ou como me disse a cigana eres su propio templo con una voz Mercedes Sosa y lentes cintilantes en los ojos é aí que me perco, árvores olhos Mercedes Sosa tão poucos ossos no peito meu peito é um quadro de giz com o desenho torto de um rio por onde nadam cardumes extremamente lentos preguiçosas criaturas que buscam ganhar a vida sem de érre hora marcada livros emprestados e jamais devolvidos vagando pelo percurso entre a memória ruína e o próximo carnaval enquanto meus rins escaldantes esquentam as suas espinhas por puro prazer o sol se perde na mata bem no meio da cidade igual às crianças em parques de diversão que de tanta euforia somem dos pais no clube que já vai fechar e por isso o salva vidas grita ACABOU e você finge que não entende porque é conveniente esquecer o português você me admira você me venera você me quer assim bem chá inglês & outras post lembranças * um faquir no viaduto na cama de pedras pontiagudas o peito aberto em palo não tem mistério em sorrir tamanduá espantar pombos cerrar punhos ver no que dá magia é a fumaça da moto andando com a moto a moto, palito de fósforo riscando a noite de fumaça como um arco de luz que acompanha a porta da sala batendo na cara cala como quem canta que falta lá de casa, que falta lá de casa |
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Novembro 2021
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